sexta-feira, 31 de outubro de 2008

today's moment of zen

Um casal de jovens chega ao consultório de um médico terapeuta sexual.

O médico pergunta: O que posso fazer por vocês?
O rapaz responde: Poderia ver-nos a fazer sexo?

O médico olha espantado, mas concorda.
Quando termina, o médico diz: Não há nada de mal na maneira como fazem
sexo.
E cobra 70,00 euros pela consulta, o que se repete por várias
semanas. O casal marca um horário, faz sexo sem nenhum problema, paga ao médico
e deixa o consultório.

Finalmente o médico resolve perguntar: Afinal, o que estão a tentar descobrir?
E o rapaz responde: Nada. O problema é que ela é casada e não posso ir
a casa dela. Também sou casado e ela não pode ir a minha casa. No
Hotel Tivoli, um quarto custa 120,00 euros, no Holliday Inn custa
100,00 euros... e aqui fazemos sexo por 70,00 euros, temos acompanhamento
médico, é passado um atestado, sou reembolsado em 42,00 euros pela
Médis e ainda consigo uma restituição do IRS de 19,25 euros.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O silêncio ensurdece a boca
do vazio que beija o olhar
que fala do tempo da dor
que esconde o rosto das mãos
que choram o nada.

Mónica

Uma (a minha) perspectiva sobre o António Lobo Antunes (ALA)

O ALA é aquele avô ranzinza a quem perdôo tudo o que diz. Não por ser demasiado permissiva (ou mesmo submissa diante do génio) mas porque se assim não fosse, não seria o “meu avô” ALA. É um homem tímido (parece-me), receoso do contacto com “os outros”, facto que disfarça com caretas e trejeitos, com tiques que se assemelham ao à vontade que se tem apenas entre amigos. Talvez a familiaridade fosse dirigida apenas ao CVM. Deu-me uma imensa vontade de rir a cara compenetrada do CVM pensando possivelmente “Só espero que isto corra bem” (pareceu-me vislumbrar algum nervosismo. É natural. O meu avô ALA não é fácil). Inúmeras vezes ao longo da noite o sobrolho soerguido que a mim gritava “Quê pá?” mas pretendia ser um “Oh claro que sim. Estou mesmo a ver/sentir tudo o que diz. Não, não estou perdido no emaranhado de palavras que lhe sai da boca”. E ao meu avô ranzinza não se pode dizer o mesmo que se diz aos restantes, a nós comuns mortais. O que é para nós, não é para ele. E um atrapalhado (Pareceu-me. Ou seria encantado?) CVM dizia “desamigos” para não proferir “inimigos”, dizia “vozes” em vez de personagens, “livro” jamais (!) romance, porque para o meu avô ALA nada pode ser o que é. É sempre tudo “OUTRA COISA”. A literatura? É “OUTRA COISA”. Não isto que andamos a ler. Os lixos que hoje se publicam. Aspirantes a “escritores” (Que jamais o serão: “uma coisa é escrever livros outra coisa, lá está, é ser escritor.) enviam-lhe os seus manuscritos (doce ingenuidade de que já fui também acometida) na esperança de uma mão amiga. Mas ele desdenha. São na maioria muito maus. “Uma merda”. Oh avô não fale assim das pessoas que lhes fere os sentimentos. Pensa ele, que todas essas pessoas querem apenas ser FAMOSAS. Pensa ele que poucos nasceram com essa premência, com essa maneira de SER. Apenas dois, máximo três no nosso país se podem dizer escritores. Apenas dois, máximo três pertencem a essa casta superior. Avô: a literatura, essa “outra coisa” de que tanto falas, não estou certa de saber o que é. Não te levo a mal que ostensivamente mo mostres, me dês conta de forma quase cruel da minha ignorância. Não te levo a mal porque vá-se lá saber porquê adoro essa tua maneira de ser. Fazes-me rir no meio de toda essa sobranceria que não posso garantir seres tu mesmo, ou uma máscara que colocas para os “outros” que te deixam desconfortável. O meu avô ALA é tudo menos linear. Não fossem as crónicas da Visão, que anseio todas as semanas ler e às quais ele chama com algum desprezo “piscinas para crianças” (por terem sempre pé) e talvez eu tivesse de admitir que ler ALA (nota: só li o “Ontem não te vi em Babilónia”) não é para mim. Sou uma pessoa simples que talvez nunca alcance as tuas “vozes” avô. Uma senhora ontem teve coragem para dizer por outras palavras que não percebera patavina dos teus livros. Perguntou-te o que dirias tu a um leitor “hipotético” que se munira de lápis e bloco de notas ao mesmo tempo que lia um teu livro para poder “perseguir” as vozes (leia-se personagens) e perceber para onde iam, de onde vinham, como reapareciam no labirinto (leia-se livro, jamais romance). Olhaste para ela incrédulo. “Labirinto? É tudo tão óbvio, tão claro, se se deixarem guiar pelos sentidos, o livro fala-vos, explica-vos tudo.” Oh avô lamento, sempre pensei ser uma pessoa intuitiva, que lia com o coração e afinal não sou, porque ao ler-te baralhei-me e fiquei assim até hoje. Gostava muito de te saber ler. Encantas-me quando num minuto dizes que te “estás nas tintas” para os leitores e no seguinte dizes coisas como “entrar no coração do coração”, “escrever sentimentos/emoções, estar no meio das vidas, ser as pessoas” ao invés de debitar simplesmente histórias. Esse binómio arrogância/sensibilidade...Essa tua peculiar maneira de ser no fundo (simplesmente) humano como nós, “os outros”. Acho-te piada que vives sem as coisas que para os outros são essenciais: cartão MB, telemóvel, computador. Para ti supérfluas. Sei bem porquê, precisas só do papel em branco, da caneta (bico grosso?) e do teu pensamento com vida própria. Só isso te basta. És uma pessoa encantadora nesse teu modo rude de ser. Só mais uma coisa, lembras-te avô da história que ontem contaste? De como te sentiste afrontado quando ao entrar maltrapilho num stand e enquanto olhavas para um Volvo Coupe que te encantou (a ti que nem ligas a carros) o vendedor te ter dito (ao cometer o erro crasso de não te reconhecer): “Isto não é para si”. Lembras-te que o compraste porque ele te disse que não podias? O mesmo se passa com a escrita. Ainda que me digas, de forma devastadora, olhando-me nos olhos com o teu azul profundo que “ela” jamais será para mim eu digo-te avô que É. E sim, será. Enquanto houver em mim um coração a pulsar, não desistirei de escrever.

Um grande beijinho avô.

Andreia Azevedo Moreira.

P.S. Isto a propósito da conversa com o António Lobo Antunes no "CAFÉ COM LETRAS" ontem na Biblioteca de Oeiras. Entrevista com Carlos Vaz Marques.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A Ogiva, por João Gante




Sonho traído



um pequeno conto de Pedro Alves


São 9h28 da manhã. Vasco dorme entusiasmado com o sonho que o acompanha desde o instante em que adormeceu. Ele conheceu, durante o seu sono, uma bela e ninfomaníaca modelo brasileira. Sheila tem 19 anos, é loira, tem seios milagrosamente grandes e um enorme sonho de se tornar modelo profissional. Vasco está animado com a ideia de passar a noite de braços dados com um sonho erótico mas, subconscientemente, pensa na sua Luísa, companheira de 8 anos de casamento - que dorme a seu lado sem imaginar o devaneio em que está Vasco (tendo Sheila a dizer-lhe as coisas mais sórdidas ao ouvido).

Ele quer, quer muito, sonhar com a modelo brasileira a fazer-lhe coisas que Luísa sempre se recusou a fazer mas tem medo, mesmo que tudo não passe de uma boa noite de sono, de se sentir culpado pelo desejo quase repugnante de ter Sheila nos seus braços e de lhe tocar como um dia já tocara na sua mulher, antes das dores de cabeça rotineiras de Luísa. Mas Sheila insiste, diz que é só um sonho e que depois disto nunca mais se voltarão a ver.

Vasco, por fim, cede – mas só depois de Sheila lhe propor uma sessão a três com a irmã Bia.

Já estão num quarto de hotel e a única memória que Vasco tem da sua mulher é um longo e carinhoso ressonar com que esta o presenteia ao seu lado, na cama de ambos.

Bia faz as honras e tira a parte de cima do bikini já por si muito reduzido. Sheila vai-se despindo enquanto a irmã, um ano mais nova e com aquilo que parece ser uma tatuagem a dizer Claudiomiro, despe Vasco por completo. Estão ali os três, nus e com um desejo enorme de tornar os desejos mais pecaminosos de Vasco numa “realidade” que o vai fazer corar de vergonha ao pé de Luísa, quando ambos acordarem. Sheila e Bia avançam, um beijo aqui, um beijo ali, o clima aquece, estão os três entusiasmados com a ideia de o estarem a fazer às escondidas, sem a hipótese de ninguém vir a saber o que naquele quarto de hotel se passou. Sheila está por cima, Bia está por baixo, existem algemas à mistura e até uma taça de morangos com chantilly, e é no meio de tudo isto que…

Luísa – Amor, acorda, telefone para ti!

O que falta dizer desta história é que aquele comunicador da TV Cabo nunca mais foi o mesmo depois da quantidade de insultos que ouviu da boca de Vasco.

Gente intrometida



um belo sketch de Mónica Cunha & Ricardo Albuquerque


Dois empresários (E1 e E2) têm um almoço de negócios num restaurante típico em Lisboa. E1 é uma pessoa submissa, muito reservada, enquanto E2 é o típico macho-alfa, uma pessoa dominante, altiva e irritante.


E1
Bom dia senhor engenheiro.


e2
Bom dia.


e1
A viagem, como…?


e2
Correu? Bem obrigado. E a sua?


e1
Também. Foi algo…


e2
Demorada? A minha também.


e1
Pois. Mas faz-se bem vindo pela…


e2
A2? Já me deixei disso, pagam-se muitas portagens. Mas hoje teve que ser. Tinha pressa.


e1
Então e a…?


e2
Família? Está óptima. O João está um rapagão.


e1
Mas não tem um…?


e2
Casal? Tenho sim. A Verónica também está enorme.


e1
Que bom, que bom. Ora, mas vamos lá…


e2
Falar de negócios? Assim é que se fala. Trabalho é trabalho, cognac é cognac.


e1
Exacto. Estou um bocado renitente quanto ao…


e2
Preço da mercadoria? Eu também. Vamos descer 2 cêntimos por kg! A farinha de trigo não está a ter assim tanta procura nesta altura do ano. Temos que estimular a procura, não é verdade?


e1
Senhor engenheiro, isso é muito…


e2
Bom? Também achei.


e1
Não não, pouco.


e2
Não o estou a acompanhar.


e1
Então, pelas minhas contas no mínimo…


e2
5 cêntimos. Eu também as sei fazer caro amigo.


e1
Sim, 5 cêntimos no mínimo! Não acha que…


e2
Podemos chegar a um acordo? Certamente. 3 cêntimos e não se fala mais nisso. Agora vamos comer.


Almoçam calmamente e, mais tarde:

e2
Bem, o almoço estava divinal. Foi um prazer fazer negócio consigo.

e1
Concordo. Não me leve a mal mas, está na hora de pedir…


e2
A conta? Deixe estar que eu trato disso. Também estou cheio de pressa.


O E2 acena ao empregado que vai logo à mesa.


e2
Era a…


empregado
Conta? Certamente.


e2
Desejava também…


empregado
Uma factura? Com certeza.


e2
Ah, e traga aqui…


empregado
O multibanco? É para já.


O empregado vai-se embora e o E2 desabada para o outro:


e2
Bolas, esta gentinha que não nos deixa acabar as frases é do mais irritante que há.


e1
Sem dúvida, do mais irritante que há! (fala enquanto fica pasmado a olhar para E2)

aforismo enviado por Pedro Alves



Deus é um tipo de cabelo e barba grandes com a mania de que é o José Mourinho.

O XICO ESPERTO

uma crónica de João Mendes (ou a exaltação de um gestor honrado)

São 5 da tarde e preparo-me para mais uma pausa para o cigarrinho. Como todas as tardes ando para o café aqui mesmo ao lado para comer um folhadozinho com o habitual café. Entro, a pacatez normal de um café da baixa a uma hora morta.

- João como é que é? - ao que respondo o habitual - É branca. Dá-me um folhado e um café Sff.
Os 5 minutos encostados ao balcão são normalmente usados para saber as últimas novidades da Baixa: sejam novos carteiristas, o estrangeiro cuja indicação do próximo supermercado passa por apanhar o comboio da linha de sintra ou mesmo ouvir as cusquices mais mórbidas como a do homem que só teve emprego até ao dia que o pai morreu, pois essa tinha sido a promessa do patrão ao pai falecido.

No entanto, quando não há novidades, aproveito para pensar na vida e naquilo que ainda tenho que fazer... já disse alguém uma vez: “o maior erro de qualquer gestor é não parar para pensar”. Contudo, esta tarde seria diferente.
Enquanto peço o dito folhado reparo na conversa de 3 “ velhos do restelo “, olhos brilhantes, rodeados de bejecas mesmo atrás de mim. Discutem bola como habitualmente, mas naquele dia o assunto não era o jogo em si. O assunto era a esperteza do Dr João Vale e Azevedo.

- O gajo é que é esperto.. f.. engana meio mundo e ainda se ri -, ao qual responde um outro, bem apresentado e com ar de Dr. também.

- Não, mas esse gajo é bom, pah. Esse gajo é um senhor. O gajo é bom. O Gajo sabe enganar como ninguém. Gajos como ele é que fazem fortuna nesta vida. Se um gajo não for esperto nunca há-de ser ninguém –
- Penso eu. - SE UM GAJO NÃO FOR ESPERTO NUNCA HÁ-DE SER NINGUÉM?
Então mas um gajo que rouba meio mundo, destroi famílias à custa da sua ganância, prova que a justiça em Portugal não funciona, é que é bom? Um gajo que falsifica assinaturas e destrói provas, entre outras atrocidades, é que é bom? Mas alguma vez alguém ouviu falar da esperteza de Einstein, Nietzsche, Luther King, Bell, Branson, Larry Page ou Sergey Brin?
Sou complemente contra a filosofia do Xico esperto. Aliás, irrita-me. Irrita-me profundamente. O Tuga é esperto, tem que ser. E se não é, ou não é tuga ou então há-de levar porrada, entenda-se calotes, calunices, etc, até aprender. Parece que o esforço, dedicação, profissionalismo, competência estão arredados da nossa sociedade. Assusta- me a forma como pretensos líderes como Santana, Soares, Portas ou Sócrates reúnem as características todas do Xico esperto, exaltados, apoiados, venerados por massas. Contudo poucos são aqueles que reconhecem nos seus atributos os valores morais necessários à liderança de um País, de uma região, de um lar... de uma barraca.
Não sou santo, muito menos anjinho. Tento ao máximo defender os interesses de quem me protege, mas nunca passar por cima dos valores que tenho enquanto ser humano.
Defendo que para tudo há que ter alguma dose de sorte e esperteza, mas também que a sorte protege os audazes. Defendo que para certas alturas é necessária a esperteza certa para lidar com adversidades - sendo esta mesma criticada esperteza que poderá nos conduzir ao sucesso.
Simplesmente não a defendo como forma de vida.

A carta



aqui ao lado, Pedro Vozone produz uma (bem real) pérola em pleno mundo virtual.

Atenção que o Vicente - destinatário desta magnífica carta - nada tem a ver com o nosso primeiro convidado... É o protagonista do verdadeiro romance work in progress, misto de thriller e literatura de viagens, que o Pedro desenha no seu blog.




"Querido Vicente,




As noites geladas aqui passadas sem ti foram fazendo de mim uma mulher igualmente fria, como uma pedra recolhida no Verão na margem dum rio e levada num bolso, em viagem, para depois ser lançada, atirada para o leito dum outro rio, gelado, num país distante, num continente distante, no fim do mundo.Como quem lança um xisto deslizante sobre o rio, na esperança de que siga à superfície e se salve na margem oposta, sei que tudo fizeste para impedir que as coisas se passassem assim. Mas não consigo deixar de me sentir a pedra gelada em que me tornei, que se afundou na travessia. E nem este calor de Junho faz derreter a mínima camada à superficie da rocha basáltica, lisa e impenetrável que agora sou. Isso revela-se na permanente ausência de diálogo; há oito meses que apenas falo para pedir numa loja aquilo de que necessito. Por dentro, também me sinto de pedra e o meu corpo acompanhou-me nesta metamorfose; está mais seco, magro, e move-se com a rigidez própria dum rochedo."Os dias passam como quem espera no silêncio o despertar do vulcão e chegue a hora em que tu, disparado destacado do seu centro, por entre milhares de outros pedaços de magma incandescente, caias sobre mim, abraçando-me e derretendo-me com o teu calor sufocante.Mas nuvens de chuva parecem não querer abandonar a boca do vulcão. E tu não voltas. E tu não explodes e irrompes pela porta da entrada, de braços abertos e enorme ramo de gerberas laranja-fogo e te abraças a mim, a chorar.Eu choro. Choro noite após noite. O fim da Primavera já chegou, cheio de calor, e eu mantenho-me imóvel, fria, baça, chorando.As notícias do dia de hoje levaram para além do limite a dor que sinto. Escrevo esta carta na fé de que nada disto seja verdade, de que o que hoje ouvi já várias vezes sobre a perseguição, o acidente e a morte em plena estrada do alentejo - do nosso alentejo - do "Homem que matou o presidente" não passem duma blague, duma enorme brincadeira de mau gosto, dum enorme dislate. Mas já nada me pode atingir, agora que sou uma fraga. Vou abandonar a casa porque sei que, a esta hora, também já me devem procurar. E se tu - por teres conseguido outra vez, mais uma vez, ludibriar a fortuna - estiveres a ler esta carta, sabes em que praia me juntei aos outros seixos e pedras que a protegem das investidas do mar.




Amor,




Margarida"

terça-feira, 28 de outubro de 2008

De belos adormecimentos vive o Homem...




textos de candidatura - VII, Antónia Marinho´


Todos nós ouvimos, em algum momento da nossa infância, histórias de encantar.
As personagens são-nos bem familiares. Há sempre uma pobre coitada, a mais bela de todas, por sinal abençoada com uma paciência de Job, prendada para as artes domésticas como só Miguel Ângelo para a cultura artística, e uma resignação perante a molestação que envergonharia qualquer mártir das Filipinas.

Há sempre um príncipe, rico e formoso, de carácter irrepreensível, talentoso e destinado - esperando paciente e abstinadamente - acrescente-se - a resgatar a pobre rapariga do seu triste fado. Há sempre a vilã, velha e feia, a maior parte das vezes, e, se bonita, só o é por artes mágicas, cuja tarefa se resume a infernizar a vida da infeliz que não pediu para nascer.

Há sempre um final feliz predestinado, um “foram felizes para sempre”, um triunfo do Bem sobre o Mal… E isto cola-se aos nossos ouvidos, apodera-se das nossas mentes e fica lá…à espera de ser verdade, à espera que aconteça…
Não teria praticamente consequência alguma se isso não se reflectisse na forma como nos perspectivamos, como encaramos a vida e nos relacionamos com os outros e com o mundo. Orientamo-nos todos, já nem sei se por causa ou consequência, por padrões extremistas e dicotómicos em que a felicidade surge como uma perfeição utópica que tem tanto de idealista como de frustrante.
Habituámo-nos a querer o impossível, pior, a exigi-lo. Se, por um lado, a felicidade passaria por atingir todos os objectivos que determinámos, por outro, não rever essa perfeição em nós ou nos outros é motivo de insatisfação. Quantas e quantas vezes passamos o tempo a lamuriarmo-nos de tudo o que nos acontece? Quantas vezes culpamos, pela nossa insatisfação, o tempo, a noite mal dormida, o trabalho, o dinheiro, o fim das férias? E quantas vezes isso nos impede de perceber que o que nos está a acontecer pode até ser melhor do que o que planeámos? Quantas oportunidades desperdiçamos para, na adversidade, revelarmos toda a nossa força, competência, aprendizagens, carácter, discernimento?
Queremos ser inteira, incomparável, irremediável e intemporalmente felizes e nem nos apercebemos que, cegos pela satisfação do nosso ego, trancamos, ironicamente, as portas à felicidade. Porque exigir uma felicidade plena, escrita aprioristicamente, é apagar as pequenas faíscas de alegria que iluminam o nosso dia.
Habituados a acreditar na divisão entre o Bem e Mal, construímos um discurso social que empurra a maldade para entidades incorpóreas, pior, para os outros, para o próximo. Advogamos para nós o papel principal, o de “coitadinho”, de pobre infeliz que espera que alguém divino tenha escrito uma merecida história com um final feliz. Justificamos as nossas incompetências com as incapacidades dos outros, os nossos defeitos com a imperfeição dos nossos semelhantes, as nossas infelicidades com invejas alheias. E vamos adiando…Adiamos olhar para nós e melhorar, adiámos olhar para os outros e tolerar, perdoar, aprender, construir, partilhar… E adormecemos as nossas dores, tranquilizamos as nossas insatisfações com lamúrias e o comodismo de uma crença que só nos alimenta de ilusão. Platão bem que nos avisou! Vivemos numa caverna desconhecendo que o mundo é bem superior às sombras que projecta.
Atrevamo-nos a reconhecer que o bem e o mal coexistem, que os opostos vivem lado a lado e só precisam de se harmonizar…tal como os humanos. A felicidade não é um estado de satisfação plena em que o homem deixou de desejar alguma coisa. Ninguém retira satisfação de algo em que não foi co-autor. Todos os dias somos postos à prova, somos convidados a evidenciar a nossa inteligência. E o inimigo não se chama Satanás, bruxaria, mau olhado. Chama-se preguiça, vício, egoísmo, corrupção, preconceito, mentira, orgulho, inveja, ambição…tão próximo de nós, tão familiar. Projectámos seres de feições maquiavélicas e, mais uma vez, escolhemos ignorar. Ignorámos que a voz do mal também ecoa dentro de nós. É por isso que rejeitamos, que receamos, que ofendemos… e, por ignorá-la, não a contrapomos, não escolhemos viver de outra forma.
Custa-nos assim tanto aceitar que o conto de fadas é escrito por nós e que, enquanto perdemos tempo com sonhos do que há-de vir, nos negamos a oportunidade de viver o que nos está a acontecer? É difícil acreditar que a nossa vida não tem um, mas pode até ter vários príncipes encantados? Não tem um, mas vários desafios que testam as nossas capacidades? Não tem um, mas vários finais felizes? E os vilões? Esses morrem a cada passo que escolhemos gostar dos outros e mostrá-lo, de partilhar com os outros e não recear a fragilidade da entrega, cada segundo que escolhemos matar um receio e plantar a confiança. Até pode ser difícil aceitar o desafio de viver estoicamente a nossa vida, mas acreditar que uma donzela, após dormir cem anos, se mantém intocável, linda e maravilhosa, e um príncipe, com um beijo, a acorda, não é mais implausível?

domingo, 26 de outubro de 2008

Vicente Jorge Silva

Nome incontornável na história da imprensa portuguesa, colaborador da SIC-N, da RDP, e cineasta, Vicente Jorge Silva foi a primeira special guest star do nosso workshop.


Do Funchal a Paris, da Revista do Expresso aos anos à frente do Público, dos segredos para a falta de assunto até às eleições norte-americanas, falou-se bem, perguntou-se muito, leu-se Pavese, divagámos, opinámos e sorrimos durante uma hora e meia. Obrigado, Vicente.

sábado, 25 de outubro de 2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Mariana ou a crónica da "não-crónica"


TPC da nossa 'caloira' de apenas 18 anos


A minha amiga Mariana é a culpada de não ter escrito nada de jeito.
Porquê? Já explico.
É culpada porque somos amigas desde os bancos da escola primária, desde as primeiras letras, os primeiros números, é culpada por eu gostar dela, por me divertir, por me fazer ser sempre criança, às vezes dou comigo a pensar, vou ter cinquenta anos, mas perto da Mariana não passarei dos dez… (Fiz este parêntesis para que compreendessem a culpa dela.)
Semana cheia de aulas, guardei a tarde de Sexta para me dedicar à cronicazinha e descansei, Sábado era o dia, e Sexta dava tempo na perfeição...
Quinta-feira, ZÁS, toca o telefone, era a Mariana.

Após os ‘tudo bem’ do costume, as perguntas sobre a escola e sobre todas aquelas patetices nossas. Perguntou ‘sabes que dia é amanhã?’ Fiz-me de esquecida, andei às voltas, ela pareceu-me entristecer a voz e foi aí que soltei ‘são os teus anos, totó’, a alegria surgiu-lhe outra vez na voz, não sei se por me ter ‘recordado’ da data, se por lhe ter chamado ‘totó’, outra das nossas coisas.
‘Estúpida’, outra palavra, ‘estava a ver que te tinhas esquecido. Amanhã vens almoçar comigo.’ Uma pergunta em jeito de afirmação, mas ela já sabia qual era a resposta. Pensei ‘quero ver quando é que vou escrever o raio da crónica…’
O ‘convite’ era tentador à partida, dito daquela forma era irrecusável, com o tal ‘não aceito o não como resposta’ bem implícito. Além do mais, não posso remeter para segundo plano a minha amizade com a Mariana, ela está lá sempre que eu preciso dela e eu estou lá sempre que ela precisa de mim. Eu conheço os seus olhares melhor do que a sua própria mãe, assim como ela me conhece a mim melhor do que ninguém.

A Mariana é a MELHOR AMIGA DO MUNDO e não pode esperar. A crónica talvez possa…


Rita Oliveira

ROTINA



textos de candidatura - VI, Vanessa Luz



Roque vende flores, desde sempre no mesmo lugar. Todos os dias, carrega numa mota com um mini-atrelado o negócio herdado. Gosta do mesmo caminho, fá-lo há anos. Do sítio onde dorme, perto de Alcântara, faz a 24 de Julho e passa no Mercado da Ribeira, onde abastece. Todos os dias, à porta do Mercado, a sua velha amiga Conceição espera-o, com os baldes cheios de flores a seus pés. Mais que os esporádicos encontros sexuais, Conceição negoceia as flores, trata-lhe das mazelas e burocracias eventuais.
Carregam o atrelado de Roque e depois ele segue para o local de trabalho, perto da Avenida de Roma. A mota tem lugar cativo, entre a passadeira dos peões e o veículo que se segue, de frente para a porta principal de um Supermercado. Da rua fez a sua casa, um lugar herdado do pai e avô.

***

Um dia, o vendedor depara com o fecho inesperado do Supermercado, prevê que com a triste realidade venham as contrariedades ao negócio. Lamenta o quanto foi distraído, talvez tivesse ouvido uns rumores. Nessa manhã um velho passeia um cão e ambos comentam a situação:

- Isto causa aborrecimento a todos, somos um animal de hábitos, não é? Exclama o velho
- A quem o diz! Trabalho aqui vai fazer trinta anos! Ainda sou do tempo em que isto era a Mercearia da Berta. Nunca fecharam isto, sempre se vendeu aqui!
- A Berta?! Que mulherão! Era belíssima, daquela beleza que ofusca … A minha mulher não podia com ela … nesse tempo não havia ASAE, nem coisas dessas.

(Roque fica pensativo)

Uma coisa é certa, a vida às vezes dá-nos oportunidade para mudar. Nunca é tarde. O que é que vai fazer, entretanto?

- Vender flores, que é a minha vida. Não sei fazer outra coisa.
- Tenho que ir, fazer umas compras, a minha mulher está transtornada com isto, sabe como são as mulheres. Vá aparecendo. Adeus, bom dia.

De mota pela cidade, Roque procura novos espaços, um novo lugar.
Resolve então estacionar em frente a um Supermercado.
Abre o atrelado e tira as coisas lá de dentro, com o habitual rigor. Nem repara que do outro lado da esquina está outro vendedor, também ele com uma mota e um mini-atrelado. Quando o vê, Roque desculpa-se imediatamente, lamenta o azar, liga novamente a mota e parte.

***

O dia chega ao fim, Roque enfrenta o pôr-do-sol, faz a Avenida 24 de Julho em direcção a Alcântara, de regresso a casa. A mota faz um barulho estranho e ele é obrigado a parar. Tenta perceber o que se passa, ligar novamente o veículo, que não anda. Está cansado. Contrariado, tira as flores que sobram no atrelado, fecha-o e faz o caminho a pé. O seu rosto reflecte desilusão, e o seu corpo extenuado, cruza-se com pessoas que o olham, ele não repara. De repente o seu olhar fixa-se nuns objectos luminosos. São umas luzes vermelhas, vêm penduradas, por fios, ao pescoço de homens. Todos eles trazem flores, como Roque. São vendedores de flores indianos. Olham estranhamente para o intruso vendedor. Parecem zombies aos olhos de Roque, um jogo de espelhos. Roque sente uma insegurança quase paranóica. Está assustado, tanto que não dá conta de um vendedor indiano que se aproxima. Tem um pato de peluche enfiado num braço, a outra mão agarra um bouquet de rosas. O pato de peluche berra quando o vendedor indiano o aperta, o que realmente acorda Roque. O indiano aponta para os sapatos de Roque e depois aponta para os seus. Tem ténis. São brancos, encorpados, um bom plágio de um modelo da Nike. Diz a Roque que deveria pôr uns ténis como os seus para suportar melhor a labuta. Roque afasta-se bruscamente, ofendido com a comparação. De rastos, lixado com a vida.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Crónica entre a ficção e a realidade

textos de candidatura - V, Luísa Oliveira

Acabo de passar duas horas de olhos pregados no filme Tropa de Elite. Forte. Impressionante. Revelador. Quase sem hiato, ligo a televisão na Sic Notícias para ouvir as últimas do sequestro no Banco Espírito Santo, em Campolide. E, ao ouvir essas mesmas últimas, creio continuar no mundo da ficção. Tropa de Elite, take II. Tiros, mortos, polícia, assaltos, sequestro. Só o cenário mudara: já não estava na favela, no Rio de Janeiro, mas numa zona nobre, essa sim de elite, da capital.

Por momentos, também pensei ter-me enganado no botão e ido parar ao gravador do MEO (passe a publicidade, mas não conheço outra maneira de lhe chamar…) na série "The Nine" (ABC), que acompanhara meses antes na RTP2. Em vários episódios, contava-se a história de nove pessoas feitas reféns, na sequência de um assalto a um banco. Em Campolide eram seis. E uma saiu rapidamente defendida por um ataque de pânico – tal e qual a primeira deixada sair na ficção. Por cá, a polícia matou um, feriu gravemente outro. Na série, os assaltantes limparam o sebo a dois. Nesta noite lisboeta de Agosto, o filme só acabou quando a polícia irrompeu porta adentro. O mesmo se passou naqueles Estados Unidos.

A gerente do banco tinha 33 anos. Marido e filhos. Era tão real, e tão pouco ficção que, quando saiu – depois de oito horas de sequestro (52 para The Nine) e uma pistola apontada à cabeça – pediu apenas a sua casa. Descanso. Foi aí que aterrei na minha própria realidade. Na realidade de todos nós. No arame instável em que nos equilibramos a cada minuto. Ao mínimo deslize… zás. Carpe diem, já dizia o outro.

Na manhã seguinte, depois de pouco sono, pequeno-almoço na Brasileira e toda a manhã na rua, em pleno Chiado – há trabalhos duros... E se, de repente, um assaltante me fizer refém, me apontar uma arma à cabeça? Isso é… isso será… ficção ou realidade?

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Quando, Meu Deus? Quando é que eu deixo de ser assim?!


textos de candidatura - IV (um registo confessional de Andreia Moreira)


Mais uma! Mais uma para anexar ao meu vasto Curriculum... DE BACORADAS! Andava eu ontem na minha ronda diária pelos blogues que gosto de espreitar e eis que aaaaaaaaaaaa (vozes celestiais) descubro que o convidado do "Boa noite Alvim" seria o José Luis Peixoto. A verdade, nua e crua, é que ainda não tinha visto um desses programas de fio a pavio pelo que ao ver este parágrafo no blog do programa... "Podem sempre ligar para as linhas habituais ou se quiserem aparecer no estúdio para nos verem ao vivo, saibam que é em Paço D’arcos, estúdios Valentim de Carvalho bastando para isso que nos enviem um email a darem-nos conta disso mesmo: boanoitealvim@sic.pt. Devem estar lá por volta das 22.30. O programa começa às 23h, na SIC Radical. Até logo." ...Achei que era um parágrafo à séria... Ora, a impulsivazinha não faz mais nada... Manda o dito mailzito a perguntar se pode ir assistir. Nada. Nenhuma resposta. Liga para o número nesse mesmo parágrafo enunciado e atende uma voz muito bem disposta "Então? Queres falar com algum dos apresentadores?" ao que eu respondi "Não. Eu queria era ir assistir ao programa" e a voz "Ok, vem cá ter!" E eu estranhando as respostas retorqui: "Eu devo estar a ligar para o sítio errado. Eu quero assistir ao programa do Alvim logo à noite..." E o simpático colaborador: "Ah mas para isso tens de ligar logo à noite. Este número é dos directos e agora está a dar o Curto Circuito" e eu "Ah ok obrigada". Bom, por esta altura estava a achar um pouco estranho
(O meu mal foi esse. É que achei APENAS um POUCO estranho e não MUITO estranho...
Tivesse eu achado MUITO estranho e não faria este tipo de figuras TANTAS vezes...)
Mas pensei para os meus botões: Aquilo é em Paço de Arcos, dou lá um saltinho, se não der para assistir volto para trás. No problem... E com isto arrasto um inocente (Sérgio perdoa-me!) para uma cena absolutamente surreal... Chegamos perto das 22h30 (O parágrafo dizia caraças! Leiam, leiam e digam lá se não induz em erro?!) dizemos ao segurança que vamos assistir ao Boa Noite Alvim o segurança diz Concerteza podem passar, não sem antes perguntar o nome do condutor que por sinal não constava do mail que eu enviei pelo que deduzo que o segurança deixa entrar QUALQUER pessoa desde que lhe digam um nome... E chegamos à apoteose do meu desvario...
- Boa noite (p'ra outro segurança de ar bondoso).
- Boa noite.
- Olhe, nós vínhamos saber se é possível assistir ao Boa Noite Alvim.
- Mas xão cumbidados?
- Não. Eu vi no blogue do programa que dava para assistir, mandei um mail mas não obtive resposta. Em todo o caso resolvi tentar e ver se dava para assistir ao programa (Amigos, tudo isto apenas e só porque o convidado era o José Luis Peixoto!)
- Biu onde? Dijia na interneiti é?
- Sim, dizia. Mas não é costume?
- Descunhecho icho menina. Descunhecho. Mas benha, benha por aqui xachavor.
E nós lá fomos mas já com a nítida sensação que mais uma vez Deiazinha tinha metido água, mas água como se de um dilúvio se tratasse. (Em todo o caso reforço a ideia de lerem o parágrafo. Leiam e digam-me se eu não fui induzida em erro!) Ninguém da produção para falar connosco no momento mas em breve alguém nos procuraria com esse intuito. Eu já estava por essa altura corada até aos ombros como é meu apanágio e dizia ao senhor segurança:
- Ouça, deixe lá. Já vi que percebi mal o que está no blogue. Deixe estar nós vamos embora.
- Espeire. Espeire chó um bucadinhu que já bem alguém falar cum bocês... (Entretanto entra a Carolina Salgado a outra convidada... Sem comentários...) E eu cada vez mais encavacada só me apetecia rir. (Porque é que eu faço recorrentemente estas coisas? Porquê? Sim o parágrafo está enganoso, mas pelos vistos eu fui a única pessoa dos arredores do Estúdio a ir para lá feita parva! Em toda a história do programa...)
- Mas não é costume virem cá pessoas?
- Nãogue.
E o Sérgio ria, ria e devia pensar Mas porque é que eu continuo a dar-lhe ouvidos? A determinada altura não aguentámos a pressão e dissemos ao senhor segurança bonacheirão que nos íamos embora e só nos faltou sair de lá a correr... À saída com quem nos cruzamos? Com o próprio do Alvim. Tive as palavras entaladas na garganta mesmo à portinha: "Oh Alvim enganaste-me!! Então afinal não dá para assistir! Aquele parágrafo está enganoso. Está, está, está!" Mas ele estava com pessoas e dois problemas se me colocaram:
1) Trato-o por tu ou por você?
2) Sou muito tímida e o mais certo era engasgar e não dizer nada e ele dar-me uma moedinha. Prossegui sem dizer nada então... À saída só para tirar as teimas (Sim porque quem lê o parágrafo depreende o mesmo que eu, ou não?) perguntei ao segurança da cancela:
- Desculpe lá. É costume virem pessoas assistir ao programa "Boa Noite Alvim"?
- Não!
- Ah ok obrigada. (Gargalhadas dentro do carro).
(Então porque é que me deixaste entrar oh caramelo! Se o nosso nome não constava de certeza absoluta da lista dos convidados do programa!)
Resultado: fomos beber o tal cafezinho e seguimos para casa para assistir ao dito cujo do sofá. Ia pôr THE END mas não ponho. Comigo é sempre sem sombra de dúvida um To be Continued.

textos de candidatura - III


um excerto de Joana Maia

(...)

Sim, e porque não incorporas tu a acção preconizadora? Escapa-me o entendimento. Má conduta, dependência de estímulo, sentido, orientação. Não consigo protagonizar a génese do meu exercício,

não encontro a acção que despoleta a criação. E adormeço, de momento em momento, no que os outros são em mim, no espaço sobrelotado da minha existência, em que apenas reajo, porque há um sufoco que paulatinamente actua, como um animal mutante que cresce de tanto nos sugar por dentro.
Cedo o meu lugar a outro.

textos de candidatura - II




SORRISO DE MORTE


Nasceu palhaço. No circo, todos admiravam a sua extraordinária capacidade para fazer rir. Era impossível ficar indiferente à sua piada natural. As suas palhaçadas eram verdadeiramente contagiantes e provocavam sempre ruidosas gargalhadas. Tinha portanto o dom do riso. Não passava pela cabeça de ninguém que alguém que vive a rir pudesse ser infeliz. Foi por isso que o suicídio do palhaço apanhou todos os artistas de surpresa. Maior choque teve a trapezista quando o encontrou já morto, nu, gelado e roxo, pendurado mesmo no centro da enorme tenda de circo. Mas o mais bizarro é que o palhaço morreu a sorrir. Parece que nem a morte conseguiu contrariar-lhe a natureza de palhaço. Morreu portanto alegremente enforcado. A rir da própria morte. Tal facto causou grande estranheza. Ninguém compreendia porque razão o palhaço se havia sorridentemente matado. Todos desconheciam que sofria por dentro do sorriso. A razão da sua tristeza era a súbita notícia da morte da mãe. E o pior é que não foi capaz de verter uma única lágrima. O palhaço confrontava-se com a dura realidade de não saber chorar. Por isso, não conseguia deitar cá para fora toda a dor que lhe assaltava o peito. Sentia-se desesperado por não conseguir chorar a morte da própria mãe. Achava-se indigno do luto materno e por isso decidiu pôr termo à própria vida. Seguiu o seu ritual circense diário mas ao contrário. Não se vestiu de palhaço como habitualmente, desnudou-se. Nem se pintou de palhaço, pelo contrário, apagou todos os vestígios de maquilhagem. Apoderou-se do chicote do domador de leões, e dirigiu-se para o centro da tenda. Antes de se enforcar ainda se olhou no pequeno espelho que trazia na mão na esperança de encontrar uma lágrima mas continuava simplesmente a sorrir. Ninguém duvida que morreu palhaço.


Mónica Cunha

sábado, 18 de outubro de 2008

elogio da infância


Na festa do 10º aniversário de um sobrinho do Pedro Vozone, sensivelmente no momento em que este disse: "Hein? 10 anos! Já estás um homenzinho"...

- Ó tio... preferia ter continuado nos 9.

aforismo ao sábado


Susana Páscoa, falando em analogia sobre certo tipo de poesia:

"É como uma prova de vinhos; quando começo a gostar, acabou".

aforismo de café




escutado durante um pedido ao balcão:


"Dê-me uma 'Mágoa das Pedras', por favor".

aforismo espontâneo


dito em aula, por João Gante, ao explicar o seu atraso e o facto de - no momento de pagar ao taxista - ter percebido, com horror, que não tinha dinheiro:

Não há nada pior do que dar más notícias a um taxista.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

textos de candidatura - I



Já ninguém faz pisca

Tirei a carta já lá vão uns anitos. O meu instrutor de condução preocupava-me. Era um daqueles velhinhos de idade indeterminável; anafadinho, como as lentes dos seus óculos. Tez rosácea. Escarafunchada. Tão esburacada, que deixava a dúvida: se devido à irresistível comichão da rubéola e a uma mãe menos firme, se a um outro estado patológico e mórbido associado à velhice. Ficava enroscado, quase urdido, no lugar do morto, como se já não valesse a pena sair dali. Tinha uma respiração pesada, como se o ar que entrava nos pulmões se tivesse também ele urdido aos álveolos e encontrasse ali o seu lugar do morto. E não quisesse sair, a não ser se soprado de modo profundo.

Penso que foi esta imagem, que ainda hoje guardo, que me fez cumprir sempre todas as regras de trânsito. Tinha um receio subconsciente de que ele, mesmo cerzido como estava à napa, me caísse em cima inanimado, numa curva mais apertada ou numa brusca mudança de direcção. Mas mantenho também ainda viva a dúvida quanto à ténue probabilidade de se ter ali aplicado, na minha candura juvenil, a estratégia do velho indefeso... e esperto.

A secretária da escola de condução, balzaquiana de Xabregas, havia-me indicado a berma do passeio e o Golf branco ali acostado. Foi a primeira vez que o vi.

- Boa tarde! – exclamei, abrindo a porta do condutor e sentando-me ao volante.

- Boa... tarde – levei de troco, junto com uma inspiração profunda entre cada palavra. Percebi que teria de ir devagar. Tinha dezassete anos. As contas estavam bem feitas; 25 aulas de código e 20 de condução e o exame final chegaria dias depois de celebrar os meus dezoito aninhos. O plano? Existia. Pegar de seguida no carro do velho acamado, carta no bolso das calças de ganga, e pirar-me para longe com o resto da malta, uns belos dias na praia com o velho bote para nos transportar de dia e de noite, para nos esquecermos dos dias. E das noites.

Era um tempo em que os condutores se respeitavam. Os carros eram mesmo nossos, tinha dado um trabalhão pormo-nos lá dentro, andavam todos devagar e gastavam todos demais, a luz da reserva sempre acesa. Nos cruzamentos, havia que dar prioridade à direita, não fosse o seguro não pagar. À entrada das rotundas, esperava-se. E toda a gente fazia pisca, cientes de que todos tinham algum sítio para onde ir e sem receio de o dizer aos restantes.

- Você tem mota! – balbuciou ele à minha quarta ou quinta curva.

- Como é que sabe?

- Inclina-se nas curvas, ouvi, enquanto me apercebia da minha postura baldada no banco e quase a bater com a cabeça no vidro da porta.

- Ah, pois tenho! Não tinha reparado, é o hábito, disse, enquanto me endireitava e metia uma terceira. Passei nos exames à primeira e fiquei contente como um idiota. O exame de código tinha algumas 25 perguntas. Podia-se errar duas regras e um sinal. Ainda hoje tenho dúvidas sobre qual a velocidade máxima nos parques de estacionamento. Em primeiro lugar, porque nunca vi placas de limite de velocidade em tais locais de partilha de espaço. Em segundo lugar, porque dúvido que essas catacumbas sejam as escolhidas para testes de arranque dos 0 aos 100 Km/h por revistas da especialidade. O risco de nos esborracharmos contra uma parede, uma coluna, ou desfazermo-la a algum peão mais incauto que se atravesse no meio do teste, é grande e provoca entropia. E torna o teste muito sujo. Houve um tipo que errou dez regras e 9 sinais, um agricultor de 50 anos. Precisava de legalizar a condução do tractor. Fiquei cheio de pena dele. Ouvi dizer que havia tipos que deixavam uma notas dentro dum envelope debaixo das provas. Percebi, solidário. Nestes anos todos, tive pouco acidentes. Felizmente. Mas a cada dia que passa, as atrocidades a que assisto de bancada, enquanto circulo calmamente pela cidade, são cada vez mais sérias e lamentáveis. Deixam-me a pensar se o meu instrutor não deveria ter, antes de morrer, franchisado o seu estilo de ensino.

Os carros já não são nossos. São das empresas ou dos bancos a quem ainda não os pagámos. Os seguros, são contra todos, e nós, também. Protegem-nos como anjos da guarda da estupidez ao volante. Os carros, são todos rápidos, TDI, CRDI, CDI, CDTI, tinoni, tinoni, tinoni...e o combustível é... gasóleo, é mais barato. À entrada das rotundas, os carros dão solavancos e solavancam pequenos cérebros, mais pequenos do que os olhos que lhes passam informação, enquanto estes decidem se um arranque a patinar será suficiente para cortar, sem bater, a curva do tipo que contorna. Este acelera a fundo na rotunda, tentando assustar e impedir manobras de falta de respeito ao status que lhe confere a lata do XLDTITI. Todos, todos cheios de pressa, em conjunto, como se com pressa de se juntarem ao meu velho instrutor no paraíso dos instrutores ou, por outras palavras, no inferno dos maus condutores. Um local terrível, onde os aceleras são obrigados, até à eternidade, a conduzir num carro de escola de condução e a não passar dos 40 Km/h. Ah, e para cúmulo da tortura, onde toda a gente faz pisca!


Pedro Vozone

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

bibliografia básica recomendada



STORY, Robert McKee


DA CRIAÇÃO AO GUIÃO, Doc Comparato


CRIATIVE-SE, Pedro Sena-Lino


THE SCREENWRITER'S WORKBOOK, Syd Field
JOGGING PARA ESCRIBAS - curso de escrita criativa da Aula do Risco, ed. Fenda

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

campanha de sensibilização humanitária




Título: Traga-me a carta das águas por favor. Estou a morrer à sede.

A história começa num restaurante moderno, com uma decoração chic, com pratos, copos e talheres de formatos invulgares. Um ambiente requintado e frequentado por pessoas da mais alta sociedade. Em todas as mesas estão homens de negócios, mulheres independentes e resolvidas que se afirmam apenas pela forma de estar; os empregados são bem-educados, cuidadosos. É hora de almoço na Baixa da cidade e é um restaurante muito procurado para encontros de negócios. Uma música chill out de fundo, toques leves dos talheres nos pratos, risos silenciosos.


Duas amigas, despreocupadas, a fazer tempo para ir às compras, sentam-se e investigam a ementa à procura do prato mais fora do normal. Entretanto uma delas pede a carta das águas. Carta das águas? Pergunta a outra.

As amigas discutem que tipo de águas preferem, o diálogo chega a ser ridículo. A dúvida é entre uma Eisenham garrafa em cristal de 9,90€; uma Cloud Juice, que é água da chuva cujas características variam consoante a temperatura a que é servida; ou uma Antípodes da Nova Zelândia.

A partir daqui o ritmo da acção acelera.

Ao mesmo tempo, do outro lado da cidade, uma mulher jovem, que tem apenas a hora de almoço para fazer as compras do dia no Pingo Doce mais próximo, debate-se entre levar uma garrafa de água de marca branca que custa 0,07€ ou uma do Luso quase 0,20€ mais cara. Há movimento à sua volta, muita gente, muita confusão, o barulho das caixas registadoras no fundo.

De repente o cenário muda e encontramo-nos em África, num deserto árido, sem árvores, com vegetação seca e muitas moscas pelo ar. Vêem-se tendas brancas, compridas, com uma cruz vermelha desenhada nos lados. Vemos a cena através dos olhos de uma criança e percebemos que as suas mãos em concha seguram num fio de água que leva à boca, água apanhada do chão. E na tenda morre outra criança por desidratação.

A cena fecha com as gotas do soro a cair lentamente no tubinho de plástico. E o som das gotas prevalece sobre todos os outros ruídos, lentas e compassadas, quase estridentes.

Eva Mota

Mais ideias para sketchs (de um humor tão negro quanto bom)

1) Nota: Filmado tipo National Geographic

Voz explica que são muitas as causas de morte infantil em África. Voz fala da fome. Ouve-se avião da ONU. Avião da ONU lança sacos de comida. Crianças correm para os apanhar. Crianças lutam para ver quem apanha o saco. Saco cai e mata crianças.

2) Curso de reintegração de doentes com Parkinson = Escola de DJs

Joana Mil-homens

TPC: tragam uma ideia e defendam-na




"Sinopse talvez para um sketch (ou 'soquete' como diria a minha avó)", João Camolas

Anúncio no Canal de Vendas “Comprinútil JÁ”

O produto é Baby Pronto, sistema imbatível no combate ao pó.


Basta um bebé – se possível com idade entre os 6 e os 12 meses – e uma aplicação de Baby Pronto para deixar a casa limpa e perfumada. O funcionamento é simples – basta uma borrifadela de spray na roupa do bebé e deixá-lo gatinhar, rebolar e rolar livremente pela casa. Assim, enquanto se exercita, ele está a ajudá-la na lide doméstica. Eficaz, hein?
Para as zonas mais difíceis, pode, ainda, adquirir em separado o adaptador (boneco de pelúcia ou

peluche) que deverá utilizar para atrair o seu bebé a esses cantos de acesso mais complicado.

Voz-off (acelerada como nos anúncios dos Bancos): Utilizar apenas bebés próprios. Não aconselhável a bebés com problemas respiratórios nem a bebés que ainda não gatinhem. Bebés recarga não disponíveis em separado.

Um produto Johnson & Johnson – A family Company

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O ursinho Freaky - um conto infantil


"(Envio o que julgo ser uma versão 'one night stand' do suposto Conto Infantil. Nada pesado. Não tenho a endurance de Madonna)", Vanessa Luz




Assim que abriu os olhos o Pequeno poeta deu um pulo da cama.

Ainda era de noite. Estava aflito para fazer xixi, pegou no capacete Mineiro, carregou na luz e foi a correr para a casa de banho. Como já estava acordado, não quis voltar para a cama. Pegou em Freaky, o seu ursinho de peluche, e sentou-se à janela a ver o sol, que ia aparecendo cada vez mais depressa.

De manhã, no carro, a caminho da escola preferia ir calado. Espreitava a rua, carros e autocarros e as pessoas. Parecia-lhe tudo igual mas às vezes descobria coisas novas. Uma grua que mudava de sítio, um autocarro colado a outro, pessoas que corriam de maneira diferente, um cão novo, muitas coisas. Descobriu que Deolinda tinha dois corações, dizia a canção que saia no rádio do carro do pai.

Assim que chegava à escola já sabia o que tinha de fazer, subir as escadas de mão dada, procurar a sua sala de aula, entrar e, dizer um simpático “Bom Dia”. Recebia uma resposta sonora de toda a turma e isso fazia o Pequeno poeta sentir-se alegremente envergonhado. A seguir ia sempre a correr procurar Estrondoso, o seu melhor amigo.

Naquela manhã, Estrondoso não estava. Tinha ficado em casa, doente com varicela, disse a professora. E Pequeno poeta precisava de encontrar um parceiro para o duelo das espadas. Reparou que Sargento estava entretido a fazer um puzzle, mesmo assim Pequeno poeta arriscou e de espada no ar desafiou-o:

- Enquanto houver justiça no mundo o Zorro estará sempre por perto!

Sargento não lhe ligou, girou o dedo dentro do nariz e continuou a fazer o puzzle. O Pequeno poeta ficou aborrecido. Pensava no Estrondoso, com aquela doença da comichão, ele teria percebido o Código de Zorro.

Mas era dia de ginástica. Todos deviam correr como Super-Heróis, de braços no ar, para apanhar a chuva, era assim que diziam as professoras. O Pequeno poeta não entendia porque devia gritar pela chuva, estava sol, afinal que jogo era aquele. Mesmo assim corria e gritava:

- Chuva, chuva, chuva.

No fim da aula de ginástica a turma deitou-se em colchões, no chão do recreio. Deviam ficar em silêncio, de braços estendidos a olhar para o Céu. Pequeno poeta olhava para o Céu, conseguia ver desenhado nas nuvens uns sapatos de Menina mãe. Viu também uma nuvem cinzenta, teve vontade de gritar ‘Chuva’, mas ficou em silêncio, preferiu olhar bem para ela. Gloriosa foi mais rápida, não teve vergonha e gritou ‘Chuva, Chuva’. Logo depois começaram a cair uns pingos grossos, cada vez mais grossos. Os maiores pingos que eles alguma vez tinham visto. Todos correram para a sala de aula, encostaram-se os lábios às janelas a ver o que chovia, todos menos o Pequeno poeta que estava muito pensativo, sentado a um canto a olhar para festa da chuva e para a sorte de Gloriosa.

Ao menos naquela tarde o lanche era especial. Havia bolo, iam cantar os ‘Parabéns’. Os pais do Engolidor levaram um grande bolo de chocolate, com quatro velas, forrado de Smarties. Todos gostaram daquele bolo. A seguir ao pão com queijo, cantaram os parabéns. O Engolidor deixou Escultural ajudá-lo na tarefa de soprar as velas. Entretanto o Cowboy, à socapa, ia tirando uns smarties do bolo. Depois todos começaram a tirar smarties. O Pequeno poeta foi a correr e ainda apanhou um. Mas não teve sorte, a Vigilante tirou-lho das mãos e deu-o ao Engolidor que chorava por causa do ataque ao bolo. Bateram mais palmas entre lágrimas e a partir desse dia o Pequeno poeta passou a chamar ao Engolidor, o Temível Engolidor de Smarties.

Nessa tarde Menina mãe chegou atrasada à escola. Vinha com o cabelo de cor diferente, encarnado. O Pequeno poeta assustou-se, não lhe parecia Menina mãe. Foram os dois comer torradas ao café. O Pequeno poeta estava triste. Não queria comer.

- Não gosto da escola, disse ele
- Mas gostas de ir à escola? Perguntou-lhe Menina mãe

O Pequeno poeta não respondeu, ficou a pensar naquilo, a pergunta não fazia sentido. Só disse que no seu aniversário queria uma Torre de Gomas em vez de um bolo. Menina mãe achou boa ideia.

Há noite Boneca de borracha, foi visitá-lo. Jantaram juntos. Diziam aos pais que não queriam ervilhas, que não tinham que ser engraçadas só por serem pequenas bolas. Riam-se, pediam alface, juravam comê-la. E, realmente, naquele dia comeram a sua primeira Folha-de-Alface. Foi uma experiência que Pequeno poeta e Boneca de borracha nunca mais se esqueceram.

Depois de fazerem a digestão decidiram dar uns pulos em cima da cama. Boneca de borracha fazia grandes acrobacias. Magoaram-se algumas vezes mas decidiram continuar a pular, esperaram que os seus pais lhes pedissem 30 vezes e aí pararam. No último pulo o Pequeno poeta caiu desajeitadamente em cima de Freaky. Ficou desolado, o urso tinha ficado com a boca ao lado, uma careta ridícula, Freaky tinha mudado e o Pequeno poeta não parava de chorar. O tenor tinha engolido um rato.

Era hora de ir para a cama, no outro dia havia escola.

O Pequeno poeta agarrou-se a Freaky, olhava-o de lado, mesmo assim deu-lhe um abraço.

Deitaram-se os dois a ver as estrelas fluorescentes coladas no tecto do quarto. Diziam que aquilo era o Céu, mas ele não percebia bem o que era o Céu. As estrelas no seu quarto eram parecidas com as da Noite e, havia uma Lua, mas a Lua verdadeira era diferente daquela, ia mudando. Tinha os seus dias.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

TPC: tragam uma ideia e defendam-na


(Joana Maia trouxe-nos o conceito para um Ensaio peculiar, possível candidato a um futuro prémio IgNobel):~


A crítica da razão prática da origem do bitoque


(back cover)

“Não é por tu o chamares de bitoque que ele o é, nem é por ele o ser sem que tu o chames que o é. Antes é porque tu o chamas e ele de facto é, tornando-se obrigatória a correlação entre a coisa e a sua denominação.”


Porque conhecer é perceber o que acontece sempre ou frequentemente, “A critica da razão prática da origem do bitoque”, é um exercício que aspira à congenialidade conjunta mas que espelha de forma pragmática a preocupação ansiosa e perturbadora, da busca de um significado, para questões essenciais.
É uma propedêutica para aquele que procura mergulhar através de um olhar autêntico na realidade per-si, um convite ao abandono de apriorismos, como ponto de partida para o esclarecimento maior.


Modelo a desenvolver proposto: Ensaio (texto reflexivo, exercício)

Def. Escrito que, sem chegar à extensão de um tratado ou monografia, aborda uma matéria (de carácter científico, filosófico, histórico, ou literário) sem o esgotar e sem o aprofundar demasiado.

Sinopse para uma ideia


(uma grande ideia de Luísa Oliveira, verdadeiro "ovo de Colombo" com enorme potencial comercial - fica aqui o registo prévio para fins de direitos de autor e a nota de que Luísa aguarda apenas um sócio com capacidade financeira):



Título: Histórias por medida

Suporte: On line

Formato: Blogue ou site

Descrição: trata-se de um site de encomendas de histórias para crianças. Os pais menos inspirados requisitam os serviços no site, descrevem as características da criança, os seus interesses, o nome dos melhores amigos, as suas principais birras e teimosias. Receberão em troca, em apenas um dia, um pequeno conto para lerem aos seus filhos, em que os personagens sejam seus conhecidos e as questões nele tratadas sejam as mesmas do seu dia-a-dia.
Exemplo: Uma criança não gosta nada de tomar banho. À noite um dos pais terá uma história para lhe contar sobre um menino que não gosta nada de tomar banho, e que por isso não tem ninguém com quem brincar porque cheira mal, e está farto de ser gozado na escola. Quando um dia decide lavar-se, a água sai preta. E tem de tomar vários banhos até a água sair clarinha e ele voltar a ser um menino asseado.

domingo, 12 de outubro de 2008

a malta do workshop do imperativo moral em Kant, sapateado e bitoques


Sábado, 11 de Outubro de 2008. Éramos felizes.


(inclui toda a gente excepto João Camolas, Joana Mil-Homens e Sara Lorga - e surgem apenas excertos de João Gante e Mónica Cunha, nomeadamente trunfa e sobrolho)

sábado, 11 de outubro de 2008

Primeiro-Ministro em part-time

um pequeno conto de Pedro Alves

Zacarias é mais um português como tantos outros.
Vem de uma família de bons costumes e sabe rodear-se de bons amigos. 42 anos, já foi padre mas agora é casado com o grande amor da sua vida – Márcio – não gosta de racistas nem de cidadãos africanos, é engenheiro informático e não gosta das “modernices dos computadores”. Um dia, resolveu candidatar-se a Primeiro-Ministro e lá conseguiu chegar ao topo do nosso Governo (os seus trunfos foram as suas convicções fortes e os seus ideais consistentes). Mas como a vida não está fácil para ninguém (nem para os mentirosos), Zacarias teve de arranjar um segundo emprego para conseguir pagar as contas lá de casa. É talhante na casa de carnes da esquina da rua onde mora.
O seu dia é rotineiro. De manhã, corta o cachaço da vaca para vender à Dona Lurdes, sua vizinha. À tarde, vai ao Parlamento explicar as contas públicas. Às Sextas à noite, ainda faz um biscate como porteiro no bar onde Márcio faz strip-tease. Não se importa com esta profissão do seu mais que tudo, pois sabe que lá em casa, em São Bento, Márcio é todo dele.
Zacarias é um homem com um só problema. A vida de Primeiro-Ministro ocupa-lhe muito tempo e as viagens ao estrangeiro já o fizeram faltar ao talho umas 5 vezes. O patrão, um cidadão angolano, ameaça despedi-lo se ele não se demitir do Governo. A viver com este dilema, Zacarias só lamenta não encontrar trabalho na sua área para poder ser alguém na vida e não precisar de dois empregos. Para já, provavelmente, Zacarias vai demitir-se do cargo de Primeiro-Ministro pois o talho fica mesmo ao pé de casa e não precisa de gastar dinheiro em transportes para inaugurar isto e aquilo por este país fora.

Carta a Sidney Lumet




Lisboa, 25 de Setembro de 2008
Caro Sidney Lumet,

Tenho a certeza que viver 80 e muitos anos lhe dá toda a legitimidade para falar dos podres que assolam o lado mais negro da alma humana. O senhor pegou numa família, matou a mãe, passou a filha para um plano mais que secundário, retratou a nora como uma fulana desastrosa, infiel e com questões sexuais por resolver e assim deixou três homens entregues a eles mesmos. Entregues a sentimentos de culpa por não terem cumprido expectativas (mesmo havendo feito o melhor que conseguiram), fracasso profissional, falhanços sentimentais, dependência de drogas, casas merdosas atoladas de medo, apartamentos de luxo vazios de cor e um plano de assalto absurdo cujo resultado deu no que deu.
Caro Sidney Lumet,
Eu estou a chegar a uma etapa da vida em que, depois de um dia duro de trabalho, o que me apetece mesmo ver é a Rita Pereira a limpar estábulos ou a ensinar criancinhas a montar, munida dos seus calçõezinhos curtos e de pernão bronzeado à mostra, o que é, como todos sabemos, o traje do comum professor de equitação. Também não digo que não à Teresa Guilherme, do alto da sua sabedoria e conhecimento sociológico, inquirindo da vontade de um pai de família bigodudo em aviar dois gajos por uma pipa de massa. Portanto, senhor realizador, a ver se nos entendemos: ou bem que passo a escolher melhor a minha programação nocturna ou bem que você passa a criar filmes um tudo nada diferentes que não me deixem a pensar que isso da lealdade é uma treta e que o bicho homem é uma causa perdida, sem redenção.

Com admiração,

Fátima Ferreira

excerto de uma crónica de Susana Tavares



(...)
Interlúdios à parte, falarei, agora sim, do que me levou a escrever sobre um chavão tão calejado como “o amor é cego”. Julgo poder ressuscitar esse lugar-comum que, de tão usado, se tornou balofo. Creio ter descoberto uma nova manifestação da expressão, mais nobre, canina mesmo. A Íris – reparem na ironia do nome enquadrado nesta crónica – é uma husky siberiana que tem tanto de pêlo preto como de branco. Os olhinhos azuis clarinhos sempre foram o ponto forte do seu book, qual modelo nórdica de suster a respiração. Quem conhece a raça, sabe que cães como a Íris são bastante carinhosos. E a Íris é, claro está, a luz dos olhos do seu dono. Constantino tem a cadela desde os tempos de secundário – e atenção que hoje é homem de barba feita. Ainda a cadela era bebé, já rebolava na areia da praia em frente à casa de Constantino, alinhando nas brincadeiras dele com os colegas. Era o centro das atenções. O orgulho daquele dono na cadela era imensurável e a Íris sabia-o. Usava-o em seu favor até. A alegre husky e Constantino eram inseparáveis. Pelo menos até à viagem de finalistas do 12º ano. Constantino acabava o secundário e partia com os colegas para Benidorm, destino clássico e incontornável de qualquer viagem de finalistas que se preze. Os olhinhos de Íris entristeceram. Naquela semana em que Constantino esteve longe, a cadela não comeu. Passou todo o tempo deitada na cama do seu dono e tomou a liberdade de lhe rasgar as roupas que lhe passavam pelos dentes. Castigava o dono que a abandonara. Sofria com aquela ausência. A mãe de Constantino desesperava ao ver a cadela naquele estado, mas ocultava o estado da pobre ao filho, para não o preocupar. No regresso de Espanha, Constantino encontrou uma cadela mais magra, mas a correr histérica ao seu encontro. Era boa de ver aquela alegria súbita, medida em dezenas de abanadelas de rabo por segundo. Íris depressa voltou ao que era dantes. Recuperou o peso perdido. Já as roupas, essas estavam irrecuperáveis.
Antes que Íris pudesse esquecer o que lhe custou aquela ausência de uma semana, Constantino partia novamente para os Estados Unidos, desta vez por um período de tempo maior. Ia com a mulher e o filho, queria trabalhar por lá durante uns anos, até conseguir pagar o empréstimo da casa que comprara depois de casar. Íris ficava na casa da mãe de Constantino. Voltou a não comer, passava os dias a chorar a ausência daquela pessoa que lhe fazia tanta falta. Os olhos azuis de Íris incharam e incharam até ficarem do tamanho de bolas de golfe. Os olhos de book, em tempos tão bonitos, estavam agora esbranquiçados e aguados, como se Íris neles guardasse todas as lágrimas que tinha para chorar. Ao fim de dois meses, os olhos minguaram, mas nunca perderam aquela camada de vidro esbranquiçado que lhes roubara o azul. Ironia das ironias: Íris estava cega. Existirá maior exemplo de que o amor é cego?

Fala criativa




Ou aforismo espontâneo dito por António Lobo Antunes em entrevista com Mário Crespo, na SIC Notícias - da qual vimos excertos imperdíveis sobre tucanos, postais da Maluda comprados no CCB e a problemática da fagocintose:

Para amar o abismo é preciso ter asas.

TPC: tragam uma ideia e defendam-na

(Andreia Moreira trouxe-nos o conceito para um possível programa TV que resultaria muito bem como sketch regular - satírico para com o género de produtos onde se encaixa):
Sinopse para programa de televisão chamado:

HÁ VIDAS MUITO MAIS DESGRAÇADAS QUE A MINHA (E AINDA BEM...)

Episódio primeiro: A profissão que exerço deu-me cabo da família.

Este é mais um programa imperdível para quem como você, gosta de saber das vidinhas alheias. Este é “O” programa feito a pensar em si que anseia encontrar vidas muito mais desgraçadas que a sua. Sabemos que não vai querer perder o drama em directo de três famílias em que um dos membros da família não consegue descolar-se da profissão que exerce no dia-a-dia. Neste primeiro episódio acompanhe o relato pungente e na primeira pessoa, da mulher de um empregado de mesa que num grito de desespero e audácia lhe implora por sexo mais arrojado, em directo para as nossas câmaras e recebe como resposta “Sim senhora, sai um sexozinho mais arrojado para esta senhora! Bem ou mal passado?”
Ou ainda a história do marido a quem a esposa, Educadora de Infância, põe a dormir a sesta todos os sábados apesar dos seus protestos e de seguida lhe dá banana esmigalhada com sumo de laranja e bolacha Maria. O homem é alérgico ao glúten, odeia banana e já não aguenta a vida que leva com ela... Por outro lado está farto de fazer trabalhos de picotado... “Se ela me pusesse a colorir livros é que era!” Diz-nos esperançado, vendo em nós a última hipótese de salvar o casamento e de comprar as canetas molin que há muito cobiça.
Por fim a sangrenta história do talhante que durante uma discussão em frente às câmaras e depois de ter dito à mulher, Dona Mimosa (nome fictício) e passamos a citar “mas o que é que tu estás p’raí a dizer ó minha “ganda” vaca (I feel good ta ra ra ra ra ra ra)?” a desmanchou com todo o primor à nossa frente e a pendurou nos ganchos do seu “Talho central” lá para os lados de Aboim das Choças.
Três histórias impressionantes e ilustrativas, de como a vida profissional se pode intrometer, de forma irremediável, no caminho da felicidade das nossas gentes. Veja os casos que o Dr. Phil gostaria de levar ao seu programa e não pode porque só nós temos o EXCLUSIVO. Se se sente frustrado, infeliz, amargurado e principalmente com vontade de se vingar em alguém, mesmo que inocente, não pode perder o HÁ VIDAS MUITO MAIS DESGRAÇADAS QUE A MINHA (E AINDA BEM...) é melhor que Renie!



O INDISPENSÁVEL ANEXO

(Estava mortinha por fazer um...)


- Conceito do programa: Uma espécie de BBC vida selvagem mas com pessoas.

- APRESENTADOR DO PROGRAMA: O primo daquele rapaz que foi ao Big Brother 3 e que não ganhou (por uma unha negra) ao ser expulso na 2ª semana dentro da casa.

- É assegurado o anonimato de todos os intervenientes no programa na medida em que todos envergarão uma máscara de Roger Rabbit a ocultar a respectiva identidade.

- Qualquer linguagem mais agressiva ou menos apropriada será dissimulada sob o refrão “(I feel good ta ra ra ra ra ra ra)” da música do James Brown.

- Duração do programa: 13 episódios.

- Todas as semanas um painel de convidados em estúdio discutirá no final do programa porque não se inova mais nos desenhos para ponto de cruz.

- Título para o 2º episódio: "Não tenho a certeza se sou psicopata (os meus vizinhos acham que sim mas não o conseguem provar)".

O dilema - por Pedro Vozone


(o TPC era trazer uma ideia num resumo de meia dúzia de linhas - para apresentar e defender/vender na aula, posto o que seria discutido qual o formato ideal para a dita cuja. Mas o incansável Vozone trouxe um possível sketch, escrito na íntegra, e que - dada a extensão e registo - talvez desse uma bela curta-metragem nas mãozinhas do Sôr Tarantino):



Este sketch tem por cenário uma bomba de gasolina actual, em Lisboa.

23h30. Um motorista encosta à bomba 1 o seu carro, com ar novo em folha. Sai do carro com um ar estafado e exclamando “Que dia! Nunca mais chego a casa!”. Abre a porta de trás, retira o casaco do fato pendurado no interior e veste-o, enquanto o vento faz abanar a gravata. Vai à procura de luvas mas não há luvas. Também não há papel. Procura noutras bombas: a 2, a 3... todas, até que desiste e agarra na mangueira com as mãos. A mangueira roça no fato e deixa uma mancha de óleo, acompanhada dum audível “Foda-se! Que merda!” Coloca a mangueira no depósito e ouve um grito no altifalante: “Esta bomba está em pré-pagamento! Não viu a tabuleta?!” Com ar furioso, recoloca a mangueira na bomba e prepara-se para ir até à caixa quando ouve outro grito estridente: “Bomba 1, coloque a mangueira como deve ser!”. Dá um empurrão violento à mangueira. Esta solta-se e bate no carro, deixando uma grande mossa. O condutor está agora furioso. Apanha a mangueira do chão e recoloca-a na bomba. Com as mãos cheias de gasóleo, dirige-se ao interior da gasolineira.

Entra e dirige-se à caixa. Enquanto atravessa o interior vazio, a câmara vai filmando as centenas de tabletes de chocolate que o rodeiam. Dirige-se ao funcionário, um miúdo magro, com cara de parvo e ar vingativo:
- Queria atestar.
- Queria, ou quer?
- Quero!
- Ah, assim está bem. Mas olhe, a esta hora não o posso deixar atestar. São regras.
- Ouça, já fiz isto tantas vezes...qual é o problema?
- São regras, responde, com um sorriso trocista que o poder de estar do lado de dentro do balcão lhe confere.
- Então são 50 euros na bomba 1.
- Tem cartão de pontos?
- Não.
- E não quer ter?
- Não!
- Mas sem cartão de pontos não pode abastecer.
- O quê? Que conversa é essa?
- São regras.
- Quais regras? Está a brincar comigo?
- Não, é um novo sistema. A esta hora sem o cartão de pontos aqui a máquina não desbloqueia - afirma, apontando para a máquina que controla as bombas. - É por causa dos roubos.

- Roubos? E o que vocês cobram pelo gasóleo, são o quê?
- Hummm...sim, tem razão. Também são roubos. Estamos então perante um dilema!, exclama o funcionário.
- Um dilema? Qual dilema?
- Ou é um roubo levar atestar e fugir sem pagar, como faz o Chico Snaita, do bairro aqui em frente, ou então o roubo está no preço do combustível.
- Mas se ele rouba o combustível, não liga ao preço!
- Hummmm...pois não.
- Então, não é roubado no preço.
- Hummmm. Pois.
- Então e se ele meter gasóleo e pagar, não é ele que é roubado?
- Bem, isso agora...talvez, mas...
- E mais vale roubar do que ser roubado, não acha?
- Sim, sem dúvida mas...
- Então isso não liga se não tiver cartão de pontos?
- Não.
- E se o ladrão tiver cartão de pontos, já pode roubar?
- Hummmm...sim, teoricamente. Não tenho a certeza. Tenho de pensar nisso. É um verdadeiro dilema.
- Ui, é melhor deixar isso para amanhã, já vi que não saímos daqui. Então e o gasóleo? Posso abastecer?
- Não. Só com cartão de pontos. Por causa dos roubos.
- Já lhe exliquei essa dos roubos, mas você insiste. Explique-me lá você: então e agora? O gasóleo que tenho não chega para me levar a outra bomba. Como é que isto se resolve?
- A esta hora, só se comprar alguma coisa. Se associar outro produto à compra, a máquina desbloqueia.
- Mas eu não quero nada, só gasóleo.
- Pois. Então não dá.
- Então dê-me lá o Auto Hoje, vá lá.
- Tem de ir buscar à zona das revistas.
Enquanto caminha para a zona das revistas furioso, nódoas no fato e mãos cheias de óleo, pega na revista, a qual fica com a capa também cheia de óleo. Regressa à caixa.
-“ Não me ponha isso assim em cima do balcão, então, está tudo sujo!”, exclama o caixa, enquanto puxa dum saco de plástico que põe entre o balcão e a revista. “São três euros e quarenta”.
- A revista custa 1 e setenta!, diz o cliente, começando a passar-se.
- E o resto é o que a máquina o deixa pôr de combustível. O valor igual ao do produto!
- O quê? Mas eu quero 50 euros de gasóleo!
- Então vai ter de comprar 50 euros de produtos. Mas noutra compra, que esta eu já registei.
O cliente respira fundo e exclama: “Arranje-me um saco!”
- Se faz favor!, diz o caixa, enquanto procura o saco.
O cliente dirige-se à prateleira dos chocolates e começa a encher o saco de Ritter Sports de todas as cores. “São baratos, estes chocolatinhos, só cinco eurinhos cada um...”, exclama ironicamente, enquanto vai contando. “Um, dois, três...Cá estão eles!”, exclama, enquanto pousa no balcão o saco cheio de chocolates. “10 chocolates! Já dá para atestar não?!”, afirma, procurando compreensão.
- São 60 euros.
- O quê? 10 chocolates a 5 euros são 50 euros! Tenho a pagar 100, incluindo o combustível!
- Estão em promoção. Cada 5 só paga 3, o que dá 6 chocolates a 5 euros, 30 euros. Mais o combustível são 60. E ainda ganha “A metamorfose”, esta semana temos o Franz em promoção.
- Irra! Pode ser, despache lá isso! Mas prefiro o “América”.
- Só quinta-feira, depois d‘ ”O Processo”.
- Esse não conheço. É sobre o quê?
- Uma história estúpida. Você não ia acreditar. Aquilo só mesmo num livro, acontecer uma coisa daquelas – afirma com ar absorto, como quem imagina as cenas do livro. De repente, olha de novo para o cliente e exclama:
- Sabe que nesta promoção dos chocolates os pontos contam a dobrar. Não quer o cartão de pontos?
- Não!
- E a promoção do Detergente da loiça? Por cada três paga dois e duplico-lhe os pontos.
- Não! Não uso Detergente da loiça!
- Então como é que lava a loiça?
- O que é que você tem a ver com isso? Despache lá o gasóleo, que eu quero-me ir embora.
- E a promoção desta revista, a “Feriado”, não quer?
- Não. NÃO QUERO PROMOÇÃO NENHUMA!
- Nesta os pontos triplicam, e ainda se habilita a ganhar um volume de tabaco de enrolar.
- NÃO FUMO! E não quero pontos.
- Ah, que pena. Tenho cá uma promoção nas mortalhas...nem queira saber as ofertas! Então, se calha, deve querer a promoção da cerveja?!
- Já lhe disse, NÃO QUERO PROMOÇÕES, registe lá isso, homem.
Entretanto chega outro cliente à bomba e forma fila atrás do cliente.
- Qual era a sua bomba?
- 1!
- Aquele carro de mulher?
- Esse mesmo!, responde, já prestes a explodir.
- De certeza que não quer a promoção da cerveja? Olhe que vou registar e depois já não pode...
- Quero lá saber das promoções! As promoções são uma merda!
- Olhó Pipi, não quer promoções. Não precisas, não? Não te faz falta?!
O cliente que afirma isto tem um ar ameaçador e uma cicatriz que lhe atravessa toda a face esquerda. Finalmente sai o talão da caixa. O cliente inicial fita longamente o homem da cicatriz olhos nos olhos após o que se dirige à saída. Dirige-se ao carro e tenta começar a abastecer. Pega na mangueira, coloca-a no bocal do depósito, mas nada acontece. Volta à bomba, deixando a mangueira colocada no carro.
- Olhó tiozinho, vens às promoções, é?, diz o homem da cicatriz.
O cliente passa-se. Volta ao carro em passo largo, abre a porta, o porta-luvas, retira um revólver.
Volta à bomba. Aponta o revólver aos presentes.
- Querem promoções? Então vamos lá a isso! Tu aí, ó enfezado - dirigindo-se ao caixa - Toca a activar as bombas todas para poderem atestar!
O funcionário, em pânico, activa as bombas.
- Com que então bloqueava! Só comprando chocolates é que dava, não era? Palerma! Então e agora, já funciona? E estás a ver agora qual é agora o dilema?, pergunta, apontando-lhe a pistola.
Vira-se para o homem da cicatriz:
- Tu, já te passou a garganta? Vais buscar o Detergente da loiça. Também está em promoção. E rápido, duas garrafas de litro!, grita, enquanto o homem da cicatriz corre para a secção dos detergentes.
O da cicatriz volta com dois frascos de Detergente da loiça.
- Dá uma garrafa ao enfezado! Vá, toca a beber essa merda, os dois! E rápido! Não gostas de promoções? Vá, bebe!, grita, olhando para o homem da cicatriz. Este bebe a garrafa até ao fim, tal como o funcionário. Fica com um ar totalmente agoniado.
- Agora vais para o microfone e dizer, com ALEGRIA, a todos os que quiserem abastecer, que o gasóleo e a gasolina estão em promoção: são GRÁTIS! Vais deixar abastecer todos os carros e não vais falar a mais ninguém em mais promoção nenhuma. Entendido?
- S-s-s-s-iim - responde, completamente lívido.
- Bom, passo aqui daqui a bocado. Se eu vir que as pessoas não estão a abastecer de borla, volto cá dentro! E tu, ó Quasi Modo, vai vomitar p’ra casa!
O cliente volta ao carro e parte. Outro carro está a tentar abastecer e já es ouve ao altifalante a notícia da promoção.

Fim de cena

exercício: textos sem "que's"







SEM TÍTULO








Ia indo desta para melhor. Atropelada por um autocarro.



Lembrei-me do treze, a carreira da Serafina, minha conhecida nos meus verdes anos, talvez por isso verdes anos. Gosto de autocarros e carreiras, há dísticos verdadeiramente emblemáticos, tipo: Marvila-Areeiro, Picheleira- Praça do Comércio ou mesmo Serafina-Serafina. Lá está.



Chamam-lhe fauna urbana.



Nem tudo é mau. Ora bolas, aquilo é um veículo andante, leva para aí uns cinquenta a contar com o pobre do motorista. A mistura de essências zoológicas pode ser verdadeiramente inspiradora, não é a memória olfactiva a soberana? Hoje lembrei-me da Serafina, naquela tangente à vida, um bafio próximo da morte, estranhamente tranquilizador, talvez por estar estampado no vidro de trás do veículo, a reconfortante mensagem:


“Sorria, viaje com a Carris”


Vanessa Luz



SEM TÍTULO


Era coxo. Mancava e deslocava-se com dificuldade. Faltava-lhe algo, mas ainda assim não deixava de viajar, de percorrer o Mundo de lés-a-lés. De sentir as palavras dos “outros”, aquelas nele colocadas, sem ele necessariamente as sentir.


Adorava contar, estórias e história, grandes e para pequenos. Não tinha forma, não era formatado – inclusive até se aborrecia com as formatações impostas pelos “outros”. Fazia rir e era engraçado, de ir às lágrimas de tão dramático. Embora leve, conseguia ser pesado. Era profundo. Mas nem sempre.

Já foi clássico apreciado, obra épica ignorada, cor-de-rosa de fazer corar os mais audazes e corajosos. Já foi curto e curtido, nem sempre denso, nem sempre poético.

Mas como os melhores tinhas os seus medos.

Tinha medo. Tinha horror. Tinha pânico de um dia acordar só, sem ninguém a quem se dar, com quem partilhar as suas mágoas, as suas angustias, as suas alegrias e viagens. De um dia acordar lívido e os seus companheiros de sempre estarem longe, demasiado longe e distraídos para olhar para ele. Para olhar por ele. Pelo menos uma última vez.

Ele era o texto.


João Camolas




SEM TÍTULO


“Mas q…?”, disse instintivamente, sobressaltada com o som da campainha. Tinha tudo preparado, o filme, as janelas e persianas fechadas, o vibrador à mão, e aparecia agora alguém pronto a estragar-lhe o seu momento. Abriu a porta com brusquidão evidente, não fosse uma testemunha de Jeová. A ideia de uma pessoa de fé interrompendo o seu momento profano entreteve-a por um segundo, antes de os seus olhos reconhecerem a meia cabeça visível por detrás do enorme ramo de flores.



“Desculpa”, disse ele, “Não queria ter feito aquela cena ao almoço.”
“E pensaste obter o meu perdão com flores…”, respondeu, seca, ela cuja maior vontade era ficar húmida.
“São para a Eduarda, não para ti”, rematou ele, tentando não parecer nervoso.
“Já é suficientemente mau teres dado a mostrar a nossa relação, no restaurante”, a sua voz saía cruel e ela não se importava. Nele podia descarregar à vontade as suas muitas frustrações. “Vai-te embora, estou ocupada!” A expectativa de prazer toldava-lhe qualquer semblante de respeito por ele, a quem mais o devia.

“Ok”, ronronou ele, manso.
“Dá beijinhos à Eduarda”, o gelo sempre presente na sua voz.
“Sofia”, respondeu ele, indignado, o hipócrita, “Não fales assim da tua mãe.”

João Gante