sábado, 28 de fevereiro de 2009

Isto não é fácil

Nos raros rasgos de lucidez que experimenta Boris sente-se devastado. Olha para Anna a seu lado, no jardim da suposta residência francesa e apetece-lhe chorar. Apetece-lhe esvair-se em lágrimas de desconsolo. Mas não pode. Por ela que já partiu há muito, há que manter a farsa. Anna: cujo corpo vagueia ainda aqui, a seu lado, roçando-lhe a roupa e a alma. Anna que parece nunca esquecer o amor que os entrelaçou para sempre, desde a primeira troca muda de olhares. Anna que perdeu porém, também para sempre, a noção do real. Sabe que a demência de que padece há anos haverá de o levar de vez. Como a ela. Há muito que ela partiu e não mais regressou. Há anos que ela vive a “outra vida”. Mantêm-se unidos pela memória de um amor teimoso, incólume à passagem do tempo e ao avanço da demência. Boris sabe de forma irrefutável que também para ele há-de chegar o dia em que não conseguirá encontrar o caminho de volta. Sabe disso porque ela se perdeu de vez e ele não quer continuar aqui sem ela. Sem ela tudo perdeu a graça. Hoje já não há encanto. É cada vez mais difícil discernir entre o que lhe aconteceu realmente nos seus 34 anos de vida e o que foi fruto da sua (da dela) imaginação insana. Recorda com uma doçura magoada a sua vida outrora normal, com Anna. Não Anna, porra. Isabel. Anna já é dos tempos de loucura. Anna já é dos tempos de Anna e Boris e de todas as outras pessoas que inventaram para apimentarem os dias. Começara tudo por brincadeira. Casaram demasiadamente jovens e fartos que estavam de uma vidinha banal e morna resolveram reinventar-se. Juntos. Se havia coisa de que não duvidavam era do amor que nutriam um pelo outro. Começou por ser coisa de fim-de-semana. Mas cedo perceberam que as brincadeiras e os fetiches já não chegavam. Os chicotes e as flagelações já não os excitavam. As trocas de nome constantes não os preenchiam. As viagens revelavam-se insuficientes. Desvanecera-se o frémito pelos terminais dos aeroportos. Queriam sentir mais. SENTIR MAIS. Queriam ultrapassar-se e viver a sua e outras vidas. Viver desalmadamente não temendo perder. E das trocas de nome, passaram para pessoas imaginadas que rapidamente transpuseram as fronteiras das suas mentes e passaram a povoar-lhes os dias. Davam-se ao trabalho de dar jantares a convidados imaginários em que a mesa era posta a rigor, as melhores garrafas de vinho eram abertas, postas a respirar e saboreadas. A melhor música passava na aparelhagem. E eles os dois dançavam a dança da insanidade. Os dois somente, rodeados das pessoas que quiseram inventar para si. Enlouqueceram juntos, António e Isabel. Boris e Anna. Tanto fazia já. As pessoas que outrora fizeram realmente parte das suas vidas afastaram-se. Olhavam para eles incrédulos. Tentaram ainda, durante muito tempo os mais fiéis, fazê-los ver o que acontecia mas de nada servira. Repudiavam-nos, clamavam legitimidade para fazer o que bem entendessem das suas vidas. E os amigos desistiram. A família desistiu. Um por um saiu de mansinho daquelas duas vidas incompreensíveis. E eles cada vez mais sós, mais se enredaram na insanidade conjunta. Assim enlouqueceram irreversivelmente, António e Isabel. Assim viveram aventuras com envelopes pardos e soros da verdade. Assim frequentaram juntos sessões de psicoterapia que ao invés de os fazerem regressar ainda lhes estimularam mais a imaginação e o devaneio. Assim andaram por Paris e por Lisboa em carros de alta cilindrada. Juntos. Foram pai e filha, amantes, assassinos, espiões armados até aos dentes, foram inimigos e amigos, foram mulheres e foram homens, partilharam e fugiram da realidade "dos outros", juntos, sempre juntos, até ao fim.

O dia em que tudo começara fora o dia em que no prato do gira-discos rodava o vinil com Clair de Lune de Debussy. Melodia com que chegou Oddville às suas vidas. Um homem que mais ninguém conheceu. A partitura que António mais gostava de interpretar, quando tocava de forma magistral o seu piano. A música maldita que de quando em vez, o obriga a regressar à cruel realidade, aquela para a qual já não é possível resgatar Isabel. O seu único e verdadeiro amor, igualmente responsável porém, pela sua desgraça. Pela sua morte. Pela morte e desgraça de ambos.

Olha para o líquido onde diluiu a dosagem fatal com que planeou a morte dos dois. Contempla desolado a bela mulher que tem a seu lado alheia ao plano, ingénua na sua ausência irremediável. Agita a garrafa acima da cabeça diante dos olhos e pensa:

É chegado o fim?

4 comentários:

Van disse...

UAU! que belo texto

Andreia Azevedo Moreira disse...

Meti na cachimónia que o fazia e "fizeo". Obrigada minha linda. Até jáaaaaaa. Bjinhos

MóniKa disse...

Força Andreia!
Beijinhos
Mónica

Andreia Azevedo Moreira disse...

Olá Mónica. Bem vinda! Beijinhos.