sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

#6

Se a luz de Lisboa pudesse ser depositada em frascos e posta no mercado seríamos um país rico. Uma babilónia de seres bronzeados proprietários de sorrisos dignos de estrelas do cinema. Sempre alimentara esta graça entre amigos. Felizmente, o momento presente não lhe permitia ver a referida utopia em ruínas, humilhada perante a arrogante mas colossal luz de Paris.
Tornara-se em apenas mais um dos habitantes da capital francesa que não merecem o chão pisado. Embora, em abono da verdade, os seus pés ainda não tivessem feito o gosto aos próprios, adormecido que estava no banco traseiro de um veículo de alta cilindrada, fazendo jus à dita numa aceleração constante a serpentear entre rotundas e túneis dormentes, neste fim de tarde chuvoso saturado de parisienses na hora de ponta de regresso a casa.
Quando acordasse pela segunda vez, recordaria excertos do sonho. Ele próprio sem barba (quando foi a última vez?). A lavar sangue das mãos, como um Pilatos literal. Uma mulher morta sem direito a lead (não sabe quem, não são como, quando nem porquê). Sabe o quê? Um verso de cor. Rimbaud a ecoar-lhe violento nas têmporas. Voici le temps des assassins.
Seria ele um?
Acordou pela primeira vez da letargia inflingida. Soergueu-se e gritou a pergunta.
- Já está acordado? - empertigou-se a mulher parecida com Anna.
- Os cavalos também se abatem. - respondeu, sardónico, o condutor. E num gesto felino de profissional experiente, soltou a mão direita do volante o segundo suficiente para o pôr a dormir de novo. As soqueiras podem ser muito práticas. Já não havia mais luz em Paris.

# 5

Não se recordava dela assim. Tão jovem. Tão bela.
Uma figura de porcelana, num decotado vestido branco de festa, iluminada pela luz artificial dos candeeiros do corredor do hotel. Quase um fantasma. Uma projecção do seu desejo.
Perdeu-se, nas recordações dum longínquo e tortuoso passado amoroso, mas apenas por uma fracção de segundos. Tempo suficiente para não reagir à presença duma terceira figura no quarto. A mesma que agora segurava com enorme destreza a seringa que sentia espetada junto ao pescoço, e lhe induzia o familiar torpor.
Anna – murmurou instantes antes de desmaiar.
Rápido – ordenou a jovem mulher ainda parada junto à porta.
Chamou-te Anna?! – questionou com surpresa o terceiro homem.Deve-me ter confundido com a minha mãe, respondeu friamente Anna, ao mesmo tempo que guardava a arma na pequena mala prateada, virando costas ao quarto de debrum cor-de-rosa, onde anos antes a sua mãe havia sido encontrada morta.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

# 4

Sempre foi assim. Fechado sobre si próprio. Como uma ostra cuja pérola é inacessível aos outros. Os normais. Os que não sentem aquela insegurança que o deixa trémulo, os que não sentem aquela solidão que lhe faz doer a alma, os que não sentem que estão a mais no mundo.
E agora? Quem estará por detrás daquela porta? O medo vai-lhe conquistando devagarinho o corpo, ao ritmo da porta que se abre. Sustem a respiração e quando a vê não consegue reprimir a surpresa: Tu?

#3

E apanhar o avião, partir, não é obviamente sinónimo de esquecer. Esquecer não pode. Viver não consegue. É demasiado cobarde para se matar. Ou corajoso? É preciso coragem para continuar vivo depois "daquilo". O inominável. Sente náusea ao recordá-lo mas como esquecê-lo? Não pode. Não deve. Tem de perpetuar a memória. Uma espécie de homenagem. Uma homenagem sórdida é certo e ainda assim, uma homenagem. Traz sempre aquela música na mente. A martelar-lhe na mente, qual litania insuportável. Enlouquece de tanto que a ouve e ela não o deixa. Quieto. Só queria estar quieto em silêncio. Mas a música acompanha-o como uma banda sonora de mau gosto. E ele segue o seu caminho. Segue sempre. Sem remorso. Começará de novo nesta outra cidade onde agora acorda. Um novo emprego o espera. Sabe que eventualmente uma nova mulher, quem sabe filhos. É novo ainda. Ainda pode muita coisa. No entanto tem noção da farsa que encenará. A bebedeira de ontem, o hálito fétido, o olho negro, a posição fetal de hoje (que lhe dá desde miúdo uma sensação de segurança controlada) e esta porta que se abre sem que ele saiba honestamente quem vem aí, são a prova que jamais terá uma vida como os outros. Jamais será como os outros que considera "normais". Lamenta. Mas não sabe ser de outra maneira.

# 2

Deixa-se estar.
Pouco a pouco elas vão aparecer, como sempre e, na pior altura. Então deixa-se estar.

Memórias de uma noite mal dormida, merdas de uma vida inteira.
Vira-se de lado. Espera. Aconchega-se de novo, pensa num cigarro e deleita-se no bafio, espreita meio-quarto. De hotel. Provavelmente o mesmo de sempre. De terceira. Paredes inteiras feitas do nada, debrum cor-de-rosa e carpete daquelas. Os passos fazem-se rápidos, cyborgs. Provavelmente homens de negócio ou, burocratas.

Um aspirador. Ruído francês. Mulheres que discutem, portas que abrem e fecham, o cheiro do café (ah, e uma Perrier, uma coisa fresca), os burocratas que entram e saem e, a porta. Sem número. Ouve-se uma chave. Espera. Continua de lado. Provavelmente é o mesmo de sempre, ou não.
Porque as mulheres falam francês.
Porque está muito frio.
Porque apanhou o tal avião.

# 1

Abre os olhos, e procura com esforço reconhecer onde se encontra. Sente sobre o olho direito o inchaço que lhe reaviva a memória turva de que terá andado à porrada. Uma dor na zona das costelas, resultante da tentativa de se levantar, confirma o pior cenário. O hálito, num misto de álcool, erva e sangue, provoca-lhe vómitos, mas não regurgita.
Surpreendentemente, o local onde se encontra não revela uma noite de violência.

Abrir 2009 com rasgos de criatividade!

Antecipando um ano de desgraças, misérias, lágrimas e depressões constantes, e para o qual comecei desde já a contribuir com um número considerável de noites de insónia, lembrei-me, resultado dessas noites brancas (entra música dos Anjos) de que podiamos dar início a 2009 com um exercício conjunto, que não só comprovará a nossa (ENORME) criatividade, como a dinamização do nosso queridíssimo blog.
A ideia não é original, muito menos na blogoesfera, mas lá que resulta, e até é engraçado, disso não há dúvidas (ou pelo menos eu não as tenho).
Ora a minha proposta é a de construção duma história a várias mãos. Em que cada um, pegando onde ficou o anterior, mas respeitando a lógica geral do texto, vai sempre acrescentando dinâmica ao enredo.
Caso fôssemos um grupo de pessoas "normais" não seria preciso instituir regras, mas como temos entre nós o Vozone, é preciso (julgo eu) instituir um limite máximo de linhas blogoesféricas por "acrescento".
Proporia umas 20 a 25 linhas.
O que vos parece?
Bem.
Óptimo! Isto da democracia é do caraças!
Pois então espero que adiram a esta iniciativa, e que a mesma vos caia no goto ... mas não se engasguem!
Posto (isto, de certeza que não se diz assim!) em seguida as minhas primeiras e singelas linhas para dar inicio ao desafio.
Beijos

Ps - Desculpem qualquer coisinha, mas isto de não dormir também tem o seu quê de ... zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz