terça-feira, 6 de janeiro de 2009

#3

E apanhar o avião, partir, não é obviamente sinónimo de esquecer. Esquecer não pode. Viver não consegue. É demasiado cobarde para se matar. Ou corajoso? É preciso coragem para continuar vivo depois "daquilo". O inominável. Sente náusea ao recordá-lo mas como esquecê-lo? Não pode. Não deve. Tem de perpetuar a memória. Uma espécie de homenagem. Uma homenagem sórdida é certo e ainda assim, uma homenagem. Traz sempre aquela música na mente. A martelar-lhe na mente, qual litania insuportável. Enlouquece de tanto que a ouve e ela não o deixa. Quieto. Só queria estar quieto em silêncio. Mas a música acompanha-o como uma banda sonora de mau gosto. E ele segue o seu caminho. Segue sempre. Sem remorso. Começará de novo nesta outra cidade onde agora acorda. Um novo emprego o espera. Sabe que eventualmente uma nova mulher, quem sabe filhos. É novo ainda. Ainda pode muita coisa. No entanto tem noção da farsa que encenará. A bebedeira de ontem, o hálito fétido, o olho negro, a posição fetal de hoje (que lhe dá desde miúdo uma sensação de segurança controlada) e esta porta que se abre sem que ele saiba honestamente quem vem aí, são a prova que jamais terá uma vida como os outros. Jamais será como os outros que considera "normais". Lamenta. Mas não sabe ser de outra maneira.

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