segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

o mordomo - uma história em três melodias


Mozart

Desespero. Sensação de urgência, de aperto no peito. Naquela manhã, o patrão tinha sido encontrado morto na biblioteca escura da mansão, entre as intermináveis estantes de livros empoeirados. Gritos cavernosos anunciaram a sua morte. Fora encontrado pela empregada, no chão de mármore, gélido e ensanguentado. Fora agredido com o pisa-papéis que sobre ele repousava, manchado de um vermelho-sangue. Naquela manhã fria de Novembro, a mansão ecoava gritos de pesar e de horror. O inspector prepara-se para anunciar aos enlutados o assassino do patrão. “Será que foi o mordomo?” – balbuciou a viúva, entre lágrimas. “É sempre o mordomo” – concluiu a empregada, leitora ávida de romances policiais, fã de Agatha Christie e de Pedro Vozone.
O jovem mordomo inglês assistia ao discurso do inspector, prostrado numa poltrona, no fundo da sala. Quase paralisado. A culpa estampada no seu rosto não significava que tivesse sido ele o autor do crime. Desta vez, para espanto da empregada e dos fãs de romances policiais, o assassino não era o mordomo. A culpa do mordomo existia, somente, por ter estado na biblioteca, na noite do crime, com o filho do patrão, seu amante.

“You only live once”
O filho do patrão não partilhava o sentimento de culpa do mordomo. Depois de, brutalmente, ter assassinado o pai, partiu no Bentley do velhote, estacionado à entrada. E viajou sem destino, livre. Não fugia do que tinha feito naquela noite. Pelo contrário. Iria entregar-se, mas só quando lhe apetecesse. Primeiro, precisava experimentar aquela sensação de liberdade durante um bocadinho. Acompanhava com euforia uma música que tocava na rádio. Cantava, sem receios. Aquela música fazia-o sentir vivo, livre, sem amarras. Aquelas horas em que viajou com o volume do rádio no máximo foram para aquele rapaz as melhores da sua vida.

“The first of the gang to die”

“You have never been in love”, concluiu, pesaroso, o mordomo, na sua língua materna. E o rapaz, mantendo o ar impassível com que regressara do passeio, não desmentiu. Seguiu calado, algemado e escoltado pela polícia ao carro do inspector. Seguiu viagem até ao cárcere. E durante essa viagem, bem diferente da que fizera na noite anterior, transportava consigo apenas um único pensamento, uma imagem onírica que contemplara na noite anterior: o reflexo das estrelas na água. Efémero e avassalador, como o amor que outrora sentira pelo mordomo.

Susana Tavares

1 comentário:

M. disse...

Gostei particularmente da referência ao Vozone =)