domingo, 30 de novembro de 2008

músicas

Na praça discutem o preço dos cravos, varinas de aventais berrantes e vocabulário de fazer corar o mais analfabeto e ordinário dos taxistas com quem são casadas. As flores esquecidas pela discussão comezinha, pequena, falam entre elas, do horto em Fernão Ferro onde nasceram e cresceram, da existência vazia de significado a que estão destinadas. Resta-lhes esperar que uma doméstica de cabelo oleoso interrompa a verborreia acesa das varinas e as leve para uma casa onde terão a difícil tarefa de amenizar o cheiro a fritos e a São Bernardo acabado de chegar de um passeio à chuva. São cravos. A flor predilecta de gente cinzenta e feia que um dia saiu para a rua e quis mudar um país. São uma flor esquecida pelas grandes casas onde as jarras são de cristal e transformam a luz do sol, aquele que lhes sorria em Fernão Ferro, em pantones infinitos.
No metro, dois adolescentes comem-se. Um casal deslavado entreolha-se indiferente. O homem gala o rabo da adolescente e a mulher pensa na sopa que vai fazer. Tem o verniz encarnado das unhas a cair e as madeixas feitas com tinta de supermercado a precisar de reforço. Uma senhora de mise a cheirar a laca entra na carruagem. Tem o rabo gordo das horas na secretária da repartição de finanças onde trabalha e de onde saiu no instante em que o ponteiro dos segundos anunciou as quatro da tarde. Olha reprovadora para os adolescentes e pensa que os seus filhos, dois atados, jamais fariam figuras destas. Manda na família, nos vizinhos, na rua e até no café do bairro onde é a cliente mais temida. Tem os lábios finos e hirtos das ordens e críticas. É gorda e tem curvas, mas está longe de ser mãe, mulher ou musa.

Joana Mil-homens

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