domingo, 16 de novembro de 2008

O Pai do Luís



O Pedro Vozone produziu, de modo involuntário, um belo mini-conto (ou grande post) a partir do desafio "Criação do Perfil de uma Personagem". O que importa é que vale - muito - a pena.


O Pai do Luís fabricava comboios na Sorefame. Via-os partir, reluzentes, da linha de montagem, e via-os voltar, desconjuntados, ferrujentos, estofos rasgados, cortados, naifados por gente da mesma linha, de Sintra, mas que não tinha conseguido arranjar um emprego na Sorefame. Os anos passavam entre a saída das carruagens imaculadas e seu regresso pútrido, infecto. Os anos passaram, pútridos, infectos. No meio da podridão, da doença e do que lhe deram.

Luís era um rapaz inteligente. Tinha jeito para a matemática. Estudou informática e os programas dele eram bons, davam jeito aos que queriam programar como ele mas não conseguiam programar como ele mas conseguiam mandar mais do que ele porque não nasceram filhos do homem que via partir e chegar os comboios.
O Luís quer ser alguém. Aos trinta anos já a calvície avança, cobrando as horas de sono perdido, as directas consecutivas a soldo dos que invejam ser como ele e sabem que ele vê a vida pelo prisma curto que lhe deram em miúdo. Vão para casa...e o Luís fica. Vão para as casas vastas e amplas e o Luís não dorme e programa, sem programa para cada noite em que deixa a mulher só em casa, barriga que cresce mês após mês, noite após noite, sem o Luís; o Luís tem programa.
O Luís vai ao ginásio à tarde, nos dias em que, depois de três directas, pensa que ganhou o direito de chegar tarde. O Luís vai ao ginásio já não se lembra desde quando, para poder combater com o seu tamanho musculado o seu interior cândido de quem acredita que envia os comboios para servir o mundo, e que esse mundo os vai tratar e respeitar, solidário com quem os construiu. O Luís ficava surpreso de cada vez que via que os comboios voltavam vandalizados. O Luís não percebia, apesar da sua enorme inteligência, flitrada por um funil de miséria, de domínio, de opressão.
O Luís lê. O Luís tenta aprender mais, fora do filtro que lhe deram quando nasceu. O Luis revolta-se, no tamanho imenso das suas patilhas. O Luís lê estratégia e revistas de economia. E atira à cara dos que já tudo leram que nada sabem do que sabem.
O Luís tem um ar afável, ajudado pelos olhos verdes, que os que queriam ter olhos verdes nos seus sonhos que tudo lhes davam, não têm. Mas mandam nele, como mandavam nos soldados de plástico da sua infância. Fingem colaborar no seu esforço com um tardio “até amanhã” que o deixa a trabalhar até de manhã. O Luís programa. O Luís corre pelos corredores a partir da segunda directa. Precisa de informação para continuar a programar, e vai buscá-la, a correr. Aqueles que o fazem correr comentam: “Os programadores? Isso são uns tipos que estão numa sala escura, dia e noite à frente dos monitores; de vez em quando vais lá, abres a porta e... atiras um bocado de carne.” E riem, riem, riem que riem dos que têm perna curta e tronco forte, ar bonacheirão e um dilema interior do tamanho do mundo: querem mandar mas todos os seus exemplos foram sempre mandados, não sabem como fazê-lo. Quem ajuda o Luís, as suas T-shirts com textos americanos subversivos que só ele, português da Amadora, percebe?

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