(resultado dos exercícios sobre o género "crónica": e esta é tão longa quanto boa - estabelecendo um interessante e inédito paralelo entre a carreira da actriz Jennifer Beals e as mudanças de atendimento nas bombas de gasolina no decurso dos tempos)
Já sou um bocado a dar para o antigo, é verdade. Mas uma das coisas boas que isso tem é que já me posso dar ao direito de não ter de aturar certas merdas, sobretudo aquelas “evoluções” da sociedade que não serviram para nada, a não ser para infernizar a cabeça do incauto que, até aí, vivia feliz dando como certa uma determinada e apreciada realidade.
Já sou um bocado a dar para o antigo, é verdade. Mas uma das coisas boas que isso tem é que já me posso dar ao direito de não ter de aturar certas merdas, sobretudo aquelas “evoluções” da sociedade que não serviram para nada, a não ser para infernizar a cabeça do incauto que, até aí, vivia feliz dando como certa uma determinada e apreciada realidade.
O tópico de hoje, enquadrado nesta problemática, são: as bombas de gasolina. Senão, vejamos: nos idos dos anos 80, nem tudo era bom. Ah pois não. Foram anos frenéticos. Alguns desses frenesins eram provocados por loucuras como “A Mosca” – filme único no sentido em que nos permitiria, em termos hipotéticos, matar - sem consequências jurídico-legais e provocando grande regojizo em determinadas camadas da população - o Jeff Goldbloom, esse grande ícone (não me sai outra palavra mais leve e as crónicas devem ser leves), com recurso a um simples spray mata-moscas (vulgo, à época, dum-dum). Outro desses frenesins tinha por origem filmes como o Flashdance, no qual uma mineira de cara laroca (Jennifer Beals) mas sempre enfarruscada, qual gata borralheira, em lugar de princesa vem a revelar-se uma gaja perdida de boa que, num alter ego, dança à noite num bar de alterne e vem a enrolar-se com o dono da mina, de carvão, ou lá do que era. A música do filme era, à época, fascinante, rivalizando em pé de igualdade contra os Davids - Sylvian, ou Bowie, ou Gilmour, ou outros - e as imagens do filme ainda perduram na minha mente e na dos restantes adolescentes de então (à excepção, talvez, das imagens da quarta vez a que o assisti na sessão da meia-noite, depois de ter consumido umas substâncias ilícitas de potência... média-alta).
Se, qual Hiro Nakamura, atravessando a barreira espaço-tempo, saíssemos duma bomba de gasolina de então e entrássemos numa gasolineira actual, o choque seria provavelmente o que teríamos se, na tal quarta sessão da meia-noite, abríssemos de repente a pestana e, ainda em semi-hipnose, de repente nos deparássemos com a mesma actriz mas a levar a cabo o seu papel actual, na “Letra L”. Só uns palitos enfiados nas pálpebras, tipo Kubrick, e um colete de forças (dos mais resistentes, em materiais compósitos) nos poderiam obrigar a continuar a fitar, em alvo, aquele triste espectáculo. Por fora, ver-se-ia que era a mesma gaja, mais refinada, aperaltada, com jóias a tentarem dar-lhe algum brilho que a juventude perdida lhe retirara; só que, agora, já não era mineira nem stripper, tinha um emprego careta qualquer e tinha-se passado para o inimigo: estava em obscenidades com uma loira justamente quando, na cena anterior, antes de adormecermos, se tinha acabado de agarrar a um machão de cabelo encaracolado e pelos na peitaça e que, ainda por cima, era o patrão dela.
As bombas antigas eram genuínas; íamos lá quando a luz da reserva já estava há tanto tempo acesa que temíamos pela vida da lâmpada. E se a lâmpada - esse barómetro do nosso dia-a-dia - se fundisse, a nossa vida mergulharia, ela também, numa imensa escuridão, ao arriscarmos ficar sem bote para transportar as miúdas ou para outras actividades lúdicas realizadas a bordo.
Nos anos oitenta havia sempre um senhor Jacinto, ou Eduardo, ou assim, que nos recebia na bomba com um sorriso. Tinha um vínculo laboral estável há muitos anos e de muito difícil cisão, gostava de trabalhar ao ar livre – julgo que esta razão não se aplicava, de igual forma, à mesma função nas ilhas britânicas, por razões de humidade – e gostava de grandes máquinas. Alguém se lembra dos “maquinões” dos anos oitenta? Exactamente, eram esses mesmo. Normalmente era o feliz proprietário duma Famel XF17 Super em segunda ou terceira mão, ou duma Sachs V5 vermelha, e perguntava sempre, quando chegávamos na nossa motoreta: “É mistura?”, já de mão no manípulo do cilindro envidraçado onde víamos o líquido amarelado da gasolina ganhar uma cor ligeiramente rosada, ao misturar-se com o óleo. Fazia-nos sentir importantes, fingindo não saber que seria impossível um chaço como a nossa Casal Boss, ou algo assim, beber outra coisa que não aquele líquido rosáceo...
Mas a gentileza não acabava aí. Se estávamos de carro, enquanto esperávamos pacientemente que as chaves nos fossem devolvidas, levadas para abrir o tampão, atirava-se logo ao pára-vidros e limpava-o com uma destreza impressionante. Ao trazer as chaves perguntava: “Quer que veja os pneus?”. À anuência respondia com um check-up completo à pressão e com um pedido de “Abra o capot, fachavor!”, verificando o nível de óleo e atestando o reservatório de água do limpa-pára-brisas. Dávamos gorjeta – aliás, pedíamos ao pessoal a bordo umas moedas para a gorjeta – e partíamos, confiantes nas potencialidades renovadas do veículo.
Experimentem lá fazer isto numa bomba dos dias de hoje; já experimentaram? Não vale a pena, não é? Imaginem que ficaram a trabalhar até tarde naquele novo projecto; são 23h30, ainda não jantaram e, na viagem para casa, acende-se a luz da reserva. Chegam à bomba, e iniciam o segundo turno do dia: funcionários da empresa de combustíveis. Sem vínculo e sem remuneração; afinal, somos nós que pagamos, para trabalhar e pelo combustível... Saiem do carro, são vocês que levam as chaves e abrem o tampão e, em lugar do antigo e simpático “Quer que veja os pneus?” ouvem um estridente e altifalante “Esta bomba está em pré-pagamento, não está a ver a tabuleta?!!” Não, não nos apetecia nada ver a tabuleta. Ou seja, além de termos tido um dia longo e arrasador, de estarmos com fome e de querermos, desde a primeira sílaba gritada, partir a cara ao puto da bomba, temos de sair do carro – gostemos ou não de trabalhar ao ar livre - de pôr as luvas para iniciar o turno, quando as há, atestar o depósito e recolher a mangueira – tem de ficar bem colocada senão ouve-se outro grito “”Coloque bem a mangueira, bomba 5!” (somos nós!). Aí, então, respiramos fundo tentando controlar os instintos e vamos ter com o menino que, a recibos verdes e apavorado com os assaltos, trabalha para uma tão igualmente apavorada petrolífera que obriga os clientes, aos gritos, a deslocarem-se até ao local onde vão ser cobrados. Este método de fidelização de clientes, indubitavelmente elaborado na “saudosa” União Soviética, tinha por base o facto de que nenhum cliente se perdia, independentemente da forma como era tratado. A razão era simples: lá, como agora, o preço era em todo o lado igual e, o serviço, em todo o lado igualmente mau, pelo que o estímulo à mudança, apesar de muito forte, acabava num qualquer Gulag. Enquanto este pensamento vai ganhando forma, o subconsciente traz-nos a cena final do Rambo, com a bomba de gasolina em chamas.
Não haverá aqui uma clara oportunidade de negócio para uma empresa de combustíveis que se queira, de facto, preocupar com os clientes e prestar um bom serviço? Fica a ideia. Ao entrarmos na bomba, surge um novo equívoco: “Mas isto afinal é um supermercado!”, pensamos. E lá vem outro flash-back (não, não é flashdance, eu disse bem): é como se as bombas fossem supermercados, ou os supermercados fossem bombas, não se conseguindo decidir ou assumir, tal qual a loira da letra L não consegue decidir se gosta mais delas ou deles. Mas afinal, em que é que ficamos?
Atravessamos o supermercado e lembramo-nos que nos falta leite, que se calhar o Auto Hoje até ia, tem lá um cronista catita e tal, e que um chocolatinho também marchava. Ah, e já agora tabaco, que o maço já tem poucos.
Como a exploração dos clientes (e o mau serviço prestado) é directamente proporcional ao aumento dos preços do combustível, já está na mente dos marketeers passar a restringir futuramente o abastecimento apenas a quem adquira um valor mínimo em produtos de maior lucro, como chocolates, fraldas ou afins. E pensam até em segmentar por produto, quer o cliente queira, quer não: “Bomba sete, para meter gasóleo compra primeiro 2 pacotes de Dodot Etapas!”; “Bimbo 4, (riso), perdão, bomba 4, para Superforce 14, abastece antes pão de forma!”.
E o futuro? Vejo-me sentado no carro, a redigir uma reclamação para entregar na bomba; a reclamação diz à gasolineira onde pode passar, a partir de agora, a meter - com força, ou mesmo à bruta - a mangueira que eu dantes metia no meu carro. E, depois, a arrancar em silêncio, no meu novo carro eléctrico! Ah, e se precisar de fazer compras, compro online. Eles que me venham trazer as compras a casa! É que eu já me posso ir dando ao direito de não ter de aturar certas merdas!
Pedro Vozone
Se, qual Hiro Nakamura, atravessando a barreira espaço-tempo, saíssemos duma bomba de gasolina de então e entrássemos numa gasolineira actual, o choque seria provavelmente o que teríamos se, na tal quarta sessão da meia-noite, abríssemos de repente a pestana e, ainda em semi-hipnose, de repente nos deparássemos com a mesma actriz mas a levar a cabo o seu papel actual, na “Letra L”. Só uns palitos enfiados nas pálpebras, tipo Kubrick, e um colete de forças (dos mais resistentes, em materiais compósitos) nos poderiam obrigar a continuar a fitar, em alvo, aquele triste espectáculo. Por fora, ver-se-ia que era a mesma gaja, mais refinada, aperaltada, com jóias a tentarem dar-lhe algum brilho que a juventude perdida lhe retirara; só que, agora, já não era mineira nem stripper, tinha um emprego careta qualquer e tinha-se passado para o inimigo: estava em obscenidades com uma loira justamente quando, na cena anterior, antes de adormecermos, se tinha acabado de agarrar a um machão de cabelo encaracolado e pelos na peitaça e que, ainda por cima, era o patrão dela.
As bombas antigas eram genuínas; íamos lá quando a luz da reserva já estava há tanto tempo acesa que temíamos pela vida da lâmpada. E se a lâmpada - esse barómetro do nosso dia-a-dia - se fundisse, a nossa vida mergulharia, ela também, numa imensa escuridão, ao arriscarmos ficar sem bote para transportar as miúdas ou para outras actividades lúdicas realizadas a bordo.
Nos anos oitenta havia sempre um senhor Jacinto, ou Eduardo, ou assim, que nos recebia na bomba com um sorriso. Tinha um vínculo laboral estável há muitos anos e de muito difícil cisão, gostava de trabalhar ao ar livre – julgo que esta razão não se aplicava, de igual forma, à mesma função nas ilhas britânicas, por razões de humidade – e gostava de grandes máquinas. Alguém se lembra dos “maquinões” dos anos oitenta? Exactamente, eram esses mesmo. Normalmente era o feliz proprietário duma Famel XF17 Super em segunda ou terceira mão, ou duma Sachs V5 vermelha, e perguntava sempre, quando chegávamos na nossa motoreta: “É mistura?”, já de mão no manípulo do cilindro envidraçado onde víamos o líquido amarelado da gasolina ganhar uma cor ligeiramente rosada, ao misturar-se com o óleo. Fazia-nos sentir importantes, fingindo não saber que seria impossível um chaço como a nossa Casal Boss, ou algo assim, beber outra coisa que não aquele líquido rosáceo...
Mas a gentileza não acabava aí. Se estávamos de carro, enquanto esperávamos pacientemente que as chaves nos fossem devolvidas, levadas para abrir o tampão, atirava-se logo ao pára-vidros e limpava-o com uma destreza impressionante. Ao trazer as chaves perguntava: “Quer que veja os pneus?”. À anuência respondia com um check-up completo à pressão e com um pedido de “Abra o capot, fachavor!”, verificando o nível de óleo e atestando o reservatório de água do limpa-pára-brisas. Dávamos gorjeta – aliás, pedíamos ao pessoal a bordo umas moedas para a gorjeta – e partíamos, confiantes nas potencialidades renovadas do veículo.
Experimentem lá fazer isto numa bomba dos dias de hoje; já experimentaram? Não vale a pena, não é? Imaginem que ficaram a trabalhar até tarde naquele novo projecto; são 23h30, ainda não jantaram e, na viagem para casa, acende-se a luz da reserva. Chegam à bomba, e iniciam o segundo turno do dia: funcionários da empresa de combustíveis. Sem vínculo e sem remuneração; afinal, somos nós que pagamos, para trabalhar e pelo combustível... Saiem do carro, são vocês que levam as chaves e abrem o tampão e, em lugar do antigo e simpático “Quer que veja os pneus?” ouvem um estridente e altifalante “Esta bomba está em pré-pagamento, não está a ver a tabuleta?!!” Não, não nos apetecia nada ver a tabuleta. Ou seja, além de termos tido um dia longo e arrasador, de estarmos com fome e de querermos, desde a primeira sílaba gritada, partir a cara ao puto da bomba, temos de sair do carro – gostemos ou não de trabalhar ao ar livre - de pôr as luvas para iniciar o turno, quando as há, atestar o depósito e recolher a mangueira – tem de ficar bem colocada senão ouve-se outro grito “”Coloque bem a mangueira, bomba 5!” (somos nós!). Aí, então, respiramos fundo tentando controlar os instintos e vamos ter com o menino que, a recibos verdes e apavorado com os assaltos, trabalha para uma tão igualmente apavorada petrolífera que obriga os clientes, aos gritos, a deslocarem-se até ao local onde vão ser cobrados. Este método de fidelização de clientes, indubitavelmente elaborado na “saudosa” União Soviética, tinha por base o facto de que nenhum cliente se perdia, independentemente da forma como era tratado. A razão era simples: lá, como agora, o preço era em todo o lado igual e, o serviço, em todo o lado igualmente mau, pelo que o estímulo à mudança, apesar de muito forte, acabava num qualquer Gulag. Enquanto este pensamento vai ganhando forma, o subconsciente traz-nos a cena final do Rambo, com a bomba de gasolina em chamas.
Não haverá aqui uma clara oportunidade de negócio para uma empresa de combustíveis que se queira, de facto, preocupar com os clientes e prestar um bom serviço? Fica a ideia. Ao entrarmos na bomba, surge um novo equívoco: “Mas isto afinal é um supermercado!”, pensamos. E lá vem outro flash-back (não, não é flashdance, eu disse bem): é como se as bombas fossem supermercados, ou os supermercados fossem bombas, não se conseguindo decidir ou assumir, tal qual a loira da letra L não consegue decidir se gosta mais delas ou deles. Mas afinal, em que é que ficamos?
Atravessamos o supermercado e lembramo-nos que nos falta leite, que se calhar o Auto Hoje até ia, tem lá um cronista catita e tal, e que um chocolatinho também marchava. Ah, e já agora tabaco, que o maço já tem poucos.
Como a exploração dos clientes (e o mau serviço prestado) é directamente proporcional ao aumento dos preços do combustível, já está na mente dos marketeers passar a restringir futuramente o abastecimento apenas a quem adquira um valor mínimo em produtos de maior lucro, como chocolates, fraldas ou afins. E pensam até em segmentar por produto, quer o cliente queira, quer não: “Bomba sete, para meter gasóleo compra primeiro 2 pacotes de Dodot Etapas!”; “Bimbo 4, (riso), perdão, bomba 4, para Superforce 14, abastece antes pão de forma!”.
E o futuro? Vejo-me sentado no carro, a redigir uma reclamação para entregar na bomba; a reclamação diz à gasolineira onde pode passar, a partir de agora, a meter - com força, ou mesmo à bruta - a mangueira que eu dantes metia no meu carro. E, depois, a arrancar em silêncio, no meu novo carro eléctrico! Ah, e se precisar de fazer compras, compro online. Eles que me venham trazer as compras a casa! É que eu já me posso ir dando ao direito de não ter de aturar certas merdas!
Pedro Vozone
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