quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Textos sobre um Objecto

(nomeadamente, uma bola de futebol Kipsta levada ao 9º andar do Amazónia como instrumento de auxílio escolar, não dedutível no IRS)

- para: treinar a imaginação e a escrita com deadline; afastar o mais possível do discurso na primeira pessoa; mudar a perspectiva habitual de abordagem a um assunto.


Vida de cão

Quem inventou este "dizer" devia estar louco. Ou certamente nunca pensou quão duro é viver aos pés de gentes ocas e toscas, que nos tratam a chutos e pontapés. Poucas de nós têm sorte. Poucas chegam a marcar golos, verdadeiramente, golos - pelo menos daqueles que decidem algo para além da felicidade estampada na cara de uma criança.
É duro não ter fim. Tal como é duro não ter principio. É duro rebolar para trás, para a frente. E o que custa esvaziar. Alguém alguma vez pensou nisso? Se calhar pensavam que nos aliviava, que nos tirava a pressão de dentro, a do dia-a-dia, que no fundo nos dá forma.
Há poucos que nos tratam bem. Há poucos que pensam em nós.
Um dia gostava de não ser bola. Ou pelo menos não de futebol.
Talvez as de Berlim sejam melhor tratadas. É verdade que a sua vida é efémera, mas enquanto dura sabe tão bem. Morrer na boca de alguém, a dar prazer, isso é que vida.
Vida de cão? Quero é ser bola de Berlim!

João Camolas


Mecanicamente laranja

Kicka parecia não ter nascido para ser uma bola com uma vida fácil. Com um problema de plaquetas baixas, sempre coleccionou hematomas como nenhuma outra bola! Como nem leves toques suporta, andava sempre aflitinha do corpo, sendo difícil ganhar a vida sem parecer que foi à guerra como bola de canhão. O Estado sempre negou a existência de um problema na Kicka, desconsiderando relatórios médicos e ignorando declarações de rendimentos insuficientes para a sobrevivência do agregado familiar. “A Kicka tem que se empenhar na procura activa de emprego”, dizem os técnicos. Nada, nem um apoiozito a esta bola que já anda a suplicar por um subsídio há anos.
Toda a família sofre por acréscimo. O marido, uma bola de basquetebol, devido ao problema de bexigas de que sofreu em criança, é apontado na rua por maltratar a mulher e já não sabe como defender-se. Portador do Síndrome de Gilles de la Tourette, sempre que lança os seus palavrões e brejeirices, é logo acusado de não ser o marido que Kicka merecia.
Ter filhos foi a sua maior alegria, visto que os médicos já não lhe davam qualquer esperança. Seria um risco que correria. Mas, quando viu nos seus braços aquelas pequenas bolas de ping-pong, nem quis acreditar! Estavam ali, prontinhas a sofrer sorte mais meiga que a sua. Pelo menos, nisso acreditava. E assim foi. Com o passar dos tempos, Kicka chegou a ver os filhos tornarem-se campeões olímpicos nas mãos de uma dupla de jogadores chineses.
O aparecimento da pessoa que lhe resolveu a vida tardou, mas chegou. Numa conceituada clínica de estética, viu-se submetida a um tratamento de coloração corporal. Ficou todinha laranja e, hoje, pode ser vista, orgulhosa e triunfante, como bóia nos campeonatos de vela.

Antónia


Sem título

Uma bola, sozinha, que pode fazer? Sem um pé, sem outra bola a seu lado. Se ao menos o chão não fosse plano, podia rolar, faces voltar-se-iam e dedos apontá-la-iam. Mas estava agora parada, inerte. Não ia a lado algum e, portanto, não tinha utilidade. Não era sequer uma bola. A centímetros, um prego. A libertação para si, a liberdade para o ar que encerrava dentro da casca de couro. O alívio. Mas antes, a dor, seguida do silvo do ar escapando para a liberdade, um silvo que soava a agradecimento, a êxtase. Quase maníaco. Soava a troça…Só então a massa disforme que era a bola percebeu. Movera-se.

João Gante


Sem título

Nasci com esta forma. Não cresço. Inúmeros verbos não são aplicados à minha reles condição. Tenho vergonha de não poder andar de metro. Ao contrário disso, ocupo um mísero espaço de alguns centímetros que não me concede altura suficiente para sequer ir ao McDrive pedir um Happy Meal. “Happy”, estranho estrangeirismo que não conheço e nem sequer me é permitido mencionar.
Em tempos vivi com outra bola, de cor mais alegre, não este negrume que também descai do lado esquerdo do peito. Mas parece que nem a cor importa porque foi diminuindo, decrescendo até mingar e torna-se num plano, junto ao chão, esquecida num canto de uma sala por onde passam pessoas, por onde existem passos e vida, com forma e objectivos.
Não tendo opinião, detesto os dias de sol. Nos de chuva, o céu é baixo e cinzento e eu posso camuflar-me nele, sentindo todo o reduto à minha volta numa abrangente sensação de conforto.
Sem sonhos, ambiciono ter membros. Sem membros, ambiciono correr por meio próprio e viver. Sem vida, espero que a minha existência seja perpetuada não pela forma mas pelas glórias que por mim passam. Sem passar, espero que o tempo imprima na minha alma um bocado de tudo o que se vive e não se perde.
Sem perder, espero vencer batalhas inúmeras e ser mais do que isto. Um objecto com forma resignado aos movimentos das mãos e dos pés que me tocam, absortos do meu mundo, com inteligência a mais para compreender a vida aqui, vários degraus abaixo da condição humana, intemporal privilégio (quase) desperdiçado.

Ana Guedes


A bola que, sem extrapolar, continuou a ser uma bola

Acordei com a náusea do costume, porque há gente que se ajeita com o toque e gente que toca por tocar, e eu odeio rebolar com qualquer um.
Gosto do gordo, da flacidez de uma mão robusta, que me aquece com a ternura de quem toca numa mulher nova. Já o miúdo da mercearia, o neto do velho, não suporto. Desde que a mãe de meia idade se juntou com o ucraniano que o miúdo desabafa comigo, e eu nunca gostei de coisas à bruta.
Não fui talhada para isso. Pensei em miúda seguir a carreira profissional mas, uma mulher num mundo de homens? Pouca hipótese tinha, disse a minha avó. “O teu lugar é aqui. Junto das crianças desta família.”
E fiz-me caseirinha. Habituei-me à roupa branca, à pedra da calçada, aos vasos no terraço da comadre.
O mais que fui foi à Nazaré numas férias de Verão, mas a maresia deu cabo de mim. As costuras a darem de si e em vez do arzinho do mar ser benéfico, valeu-me este remendo no hexágono superior esquerdo, e as mãos do mecânico da travessa de trás a espetar-me alfinetes, tipo acupunctura.
Vou tomar um Compensan. Daqui a pouco é o intervalo grande, e eu sou a única que não posso dizer “Cavalinho branco para todos os jogos”.

Joana Maia

Sem comentários: