Já ninguém faz pisca
Tirei a carta já lá vão uns anitos. O meu instrutor de condução preocupava-me. Era um daqueles velhinhos de idade indeterminável; anafadinho, como as lentes dos seus óculos. Tez rosácea. Escarafunchada. Tão esburacada, que deixava a dúvida: se devido à irresistível comichão da rubéola e a uma mãe menos firme, se a um outro estado patológico e mórbido associado à velhice. Ficava enroscado, quase urdido, no lugar do morto, como se já não valesse a pena sair dali. Tinha uma respiração pesada, como se o ar que entrava nos pulmões se tivesse também ele urdido aos álveolos e encontrasse ali o seu lugar do morto. E não quisesse sair, a não ser se soprado de modo profundo.
Penso que foi esta imagem, que ainda hoje guardo, que me fez cumprir sempre todas as regras de trânsito. Tinha um receio subconsciente de que ele, mesmo cerzido como estava à napa, me caísse em cima inanimado, numa curva mais apertada ou numa brusca mudança de direcção. Mas mantenho também ainda viva a dúvida quanto à ténue probabilidade de se ter ali aplicado, na minha candura juvenil, a estratégia do velho indefeso... e esperto.
A secretária da escola de condução, balzaquiana de Xabregas, havia-me indicado a berma do passeio e o Golf branco ali acostado. Foi a primeira vez que o vi.
- Boa tarde! – exclamei, abrindo a porta do condutor e sentando-me ao volante.
- Boa... tarde – levei de troco, junto com uma inspiração profunda entre cada palavra. Percebi que teria de ir devagar. Tinha dezassete anos. As contas estavam bem feitas; 25 aulas de código e 20 de condução e o exame final chegaria dias depois de celebrar os meus dezoito aninhos. O plano? Existia. Pegar de seguida no carro do velho acamado, carta no bolso das calças de ganga, e pirar-me para longe com o resto da malta, uns belos dias na praia com o velho bote para nos transportar de dia e de noite, para nos esquecermos dos dias. E das noites.
Era um tempo em que os condutores se respeitavam. Os carros eram mesmo nossos, tinha dado um trabalhão pormo-nos lá dentro, andavam todos devagar e gastavam todos demais, a luz da reserva sempre acesa. Nos cruzamentos, havia que dar prioridade à direita, não fosse o seguro não pagar. À entrada das rotundas, esperava-se. E toda a gente fazia pisca, cientes de que todos tinham algum sítio para onde ir e sem receio de o dizer aos restantes.
- Você tem mota! – balbuciou ele à minha quarta ou quinta curva.
- Como é que sabe?
- Inclina-se nas curvas, ouvi, enquanto me apercebia da minha postura baldada no banco e quase a bater com a cabeça no vidro da porta.
- Ah, pois tenho! Não tinha reparado, é o hábito, disse, enquanto me endireitava e metia uma terceira. Passei nos exames à primeira e fiquei contente como um idiota. O exame de código tinha algumas 25 perguntas. Podia-se errar duas regras e um sinal. Ainda hoje tenho dúvidas sobre qual a velocidade máxima nos parques de estacionamento. Em primeiro lugar, porque nunca vi placas de limite de velocidade em tais locais de partilha de espaço. Em segundo lugar, porque dúvido que essas catacumbas sejam as escolhidas para testes de arranque dos 0 aos 100 Km/h por revistas da especialidade. O risco de nos esborracharmos contra uma parede, uma coluna, ou desfazermo-la a algum peão mais incauto que se atravesse no meio do teste, é grande e provoca entropia. E torna o teste muito sujo. Houve um tipo que errou dez regras e 9 sinais, um agricultor de 50 anos. Precisava de legalizar a condução do tractor. Fiquei cheio de pena dele. Ouvi dizer que havia tipos que deixavam uma notas dentro dum envelope debaixo das provas. Percebi, solidário. Nestes anos todos, tive pouco acidentes. Felizmente. Mas a cada dia que passa, as atrocidades a que assisto de bancada, enquanto circulo calmamente pela cidade, são cada vez mais sérias e lamentáveis. Deixam-me a pensar se o meu instrutor não deveria ter, antes de morrer, franchisado o seu estilo de ensino.
Os carros já não são nossos. São das empresas ou dos bancos a quem ainda não os pagámos. Os seguros, são contra todos, e nós, também. Protegem-nos como anjos da guarda da estupidez ao volante. Os carros, são todos rápidos, TDI, CRDI, CDI, CDTI, tinoni, tinoni, tinoni...e o combustível é... gasóleo, é mais barato. À entrada das rotundas, os carros dão solavancos e solavancam pequenos cérebros, mais pequenos do que os olhos que lhes passam informação, enquanto estes decidem se um arranque a patinar será suficiente para cortar, sem bater, a curva do tipo que contorna. Este acelera a fundo na rotunda, tentando assustar e impedir manobras de falta de respeito ao status que lhe confere a lata do XLDTITI. Todos, todos cheios de pressa, em conjunto, como se com pressa de se juntarem ao meu velho instrutor no paraíso dos instrutores ou, por outras palavras, no inferno dos maus condutores. Um local terrível, onde os aceleras são obrigados, até à eternidade, a conduzir num carro de escola de condução e a não passar dos 40 Km/h. Ah, e para cúmulo da tortura, onde toda a gente faz pisca!
Pedro Vozone
1 comentário:
"Todos, todos cheios de pressa" - sem tempo para reflectir no que somos.
Gostei da "fotografia" do "inferno dos maus condutores".
Mónica
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