quinta-feira, 9 de outubro de 2008

exercício "Crónica": A Shakira e o meu Pai




O meu pai gosta da Shakira. Da música da Shakira. Se gostasse só da Shakira não dizia nada até porque o senhor é viúvo e desimpedido (acho). Não. O meu pai gosta da música da Shakira. E diz, sem vergonha absolutamente nenhuma, que gosta da música da Shakira. E sabe as letras. E não é só das músicas “mexidas”. Ele conhece os slows. Isto preocupa-me. O meu pai era um tipo com bom gosto. A sério. Era cool. Ouvia Ravi Shankar. E Doors. E Grateful Dead. Tem um álbum de Young Marble Giants.

Agora deu nisto. A primeira vez que disse que gostava da Shakira, pensei que fosse uma provocação. Ri-me e mudei a estação de rádio. Ele deve ter percebido que havia cometido um qualquer faux pas e não insistiu. No casamento de uma prima, assumiu-se. Saltou para o meio da pista arrastando uma tia, já sexagenária, ameaçando a mise da senhora (juro que a vi franzir a testa numa tentativa de contrair o couro cabeludo e assim manter os três pelos a que chama carinhosamente “cabelo” devidamente no lugar).

Ficámos todos parvos. Culpámos o álcool, quando, desta vez, ele não tinha culpa nenhuma. O gosto do meu pai evaporou-se. Tudo bem que a mãe dele é surda. Mas há limites. Antes surdo e a ler lábios. Aparentemente ele ouve bem. Aparentemente. A minha irmã e eu ficámos verdadeiramente preocupadas. Depois disto o quê? Vai substituir os calhamaços de História, editados pela Penguin (uma tara) por livros da Danielle Steel?

Será que envelhecer é isto? Ou isto é um gene que o meu pai tem e agora resta-me rezar para que em mim ele esteja desactivado? É difícil fazer comparações. Nenhum dos meus tios ouvia música cool. Tenho uma tia que era fanática do Kenny G. Se ela disser que gosta de Shakira, sou capaz de a felicitar pela (lenta) evolução. Há os fãs da música clássica. Mas esses não evoluem. Se há 60 anos que gostam de música de gente morta, não é agora que vão ouvir gente viva. Muito menos gente capaz de mexer as ancas como se as cartilagens fossem acessórios desnecessários.

Pior. Muito pior. Comoveu-se com o Mamma Mia! Para além de isso lhe retirar qualquer rasgo de masculinidade, é sinónimo que o gosto musical morre muito antes de deixarmos de respirar. Diz que acabou o filme de pé e a dançar (medo).
De certa forma mereço levar com a Shakira. E ficar calada quanto a isso. Afinal, com quatro anos aprendi a mexer no gira-discos lá de casa. E fazia loops do “I just call to say I love you” do Stevie Wonder (uma compra da minha mãe). Mas custa-me pensar que é isto que me espera. E agora nem há vinis. Um vinil é um vinil. Pode ser um vinil da Filarmónica de A-dos-Cunhados que tem pinta (longe de um gira-discos, claro). Vou deixar uma pilha de cassetes (não me consigo desfazer delas), CD’s, playlists. Para um dia os meus filhos ficarem à rasca quando dançar Gipsy Kings numa sala de cinema do El Corte Inglês.




Joana Mil-Homens

1 comentário:

MóniKa disse...

"Pior. Muito pior. Comoveu-se com o Mamma Mia!" - também eu!
Mónica