sábado, 11 de outubro de 2008

O dilema - por Pedro Vozone


(o TPC era trazer uma ideia num resumo de meia dúzia de linhas - para apresentar e defender/vender na aula, posto o que seria discutido qual o formato ideal para a dita cuja. Mas o incansável Vozone trouxe um possível sketch, escrito na íntegra, e que - dada a extensão e registo - talvez desse uma bela curta-metragem nas mãozinhas do Sôr Tarantino):



Este sketch tem por cenário uma bomba de gasolina actual, em Lisboa.

23h30. Um motorista encosta à bomba 1 o seu carro, com ar novo em folha. Sai do carro com um ar estafado e exclamando “Que dia! Nunca mais chego a casa!”. Abre a porta de trás, retira o casaco do fato pendurado no interior e veste-o, enquanto o vento faz abanar a gravata. Vai à procura de luvas mas não há luvas. Também não há papel. Procura noutras bombas: a 2, a 3... todas, até que desiste e agarra na mangueira com as mãos. A mangueira roça no fato e deixa uma mancha de óleo, acompanhada dum audível “Foda-se! Que merda!” Coloca a mangueira no depósito e ouve um grito no altifalante: “Esta bomba está em pré-pagamento! Não viu a tabuleta?!” Com ar furioso, recoloca a mangueira na bomba e prepara-se para ir até à caixa quando ouve outro grito estridente: “Bomba 1, coloque a mangueira como deve ser!”. Dá um empurrão violento à mangueira. Esta solta-se e bate no carro, deixando uma grande mossa. O condutor está agora furioso. Apanha a mangueira do chão e recoloca-a na bomba. Com as mãos cheias de gasóleo, dirige-se ao interior da gasolineira.

Entra e dirige-se à caixa. Enquanto atravessa o interior vazio, a câmara vai filmando as centenas de tabletes de chocolate que o rodeiam. Dirige-se ao funcionário, um miúdo magro, com cara de parvo e ar vingativo:
- Queria atestar.
- Queria, ou quer?
- Quero!
- Ah, assim está bem. Mas olhe, a esta hora não o posso deixar atestar. São regras.
- Ouça, já fiz isto tantas vezes...qual é o problema?
- São regras, responde, com um sorriso trocista que o poder de estar do lado de dentro do balcão lhe confere.
- Então são 50 euros na bomba 1.
- Tem cartão de pontos?
- Não.
- E não quer ter?
- Não!
- Mas sem cartão de pontos não pode abastecer.
- O quê? Que conversa é essa?
- São regras.
- Quais regras? Está a brincar comigo?
- Não, é um novo sistema. A esta hora sem o cartão de pontos aqui a máquina não desbloqueia - afirma, apontando para a máquina que controla as bombas. - É por causa dos roubos.

- Roubos? E o que vocês cobram pelo gasóleo, são o quê?
- Hummm...sim, tem razão. Também são roubos. Estamos então perante um dilema!, exclama o funcionário.
- Um dilema? Qual dilema?
- Ou é um roubo levar atestar e fugir sem pagar, como faz o Chico Snaita, do bairro aqui em frente, ou então o roubo está no preço do combustível.
- Mas se ele rouba o combustível, não liga ao preço!
- Hummmm...pois não.
- Então, não é roubado no preço.
- Hummmm. Pois.
- Então e se ele meter gasóleo e pagar, não é ele que é roubado?
- Bem, isso agora...talvez, mas...
- E mais vale roubar do que ser roubado, não acha?
- Sim, sem dúvida mas...
- Então isso não liga se não tiver cartão de pontos?
- Não.
- E se o ladrão tiver cartão de pontos, já pode roubar?
- Hummmm...sim, teoricamente. Não tenho a certeza. Tenho de pensar nisso. É um verdadeiro dilema.
- Ui, é melhor deixar isso para amanhã, já vi que não saímos daqui. Então e o gasóleo? Posso abastecer?
- Não. Só com cartão de pontos. Por causa dos roubos.
- Já lhe exliquei essa dos roubos, mas você insiste. Explique-me lá você: então e agora? O gasóleo que tenho não chega para me levar a outra bomba. Como é que isto se resolve?
- A esta hora, só se comprar alguma coisa. Se associar outro produto à compra, a máquina desbloqueia.
- Mas eu não quero nada, só gasóleo.
- Pois. Então não dá.
- Então dê-me lá o Auto Hoje, vá lá.
- Tem de ir buscar à zona das revistas.
Enquanto caminha para a zona das revistas furioso, nódoas no fato e mãos cheias de óleo, pega na revista, a qual fica com a capa também cheia de óleo. Regressa à caixa.
-“ Não me ponha isso assim em cima do balcão, então, está tudo sujo!”, exclama o caixa, enquanto puxa dum saco de plástico que põe entre o balcão e a revista. “São três euros e quarenta”.
- A revista custa 1 e setenta!, diz o cliente, começando a passar-se.
- E o resto é o que a máquina o deixa pôr de combustível. O valor igual ao do produto!
- O quê? Mas eu quero 50 euros de gasóleo!
- Então vai ter de comprar 50 euros de produtos. Mas noutra compra, que esta eu já registei.
O cliente respira fundo e exclama: “Arranje-me um saco!”
- Se faz favor!, diz o caixa, enquanto procura o saco.
O cliente dirige-se à prateleira dos chocolates e começa a encher o saco de Ritter Sports de todas as cores. “São baratos, estes chocolatinhos, só cinco eurinhos cada um...”, exclama ironicamente, enquanto vai contando. “Um, dois, três...Cá estão eles!”, exclama, enquanto pousa no balcão o saco cheio de chocolates. “10 chocolates! Já dá para atestar não?!”, afirma, procurando compreensão.
- São 60 euros.
- O quê? 10 chocolates a 5 euros são 50 euros! Tenho a pagar 100, incluindo o combustível!
- Estão em promoção. Cada 5 só paga 3, o que dá 6 chocolates a 5 euros, 30 euros. Mais o combustível são 60. E ainda ganha “A metamorfose”, esta semana temos o Franz em promoção.
- Irra! Pode ser, despache lá isso! Mas prefiro o “América”.
- Só quinta-feira, depois d‘ ”O Processo”.
- Esse não conheço. É sobre o quê?
- Uma história estúpida. Você não ia acreditar. Aquilo só mesmo num livro, acontecer uma coisa daquelas – afirma com ar absorto, como quem imagina as cenas do livro. De repente, olha de novo para o cliente e exclama:
- Sabe que nesta promoção dos chocolates os pontos contam a dobrar. Não quer o cartão de pontos?
- Não!
- E a promoção do Detergente da loiça? Por cada três paga dois e duplico-lhe os pontos.
- Não! Não uso Detergente da loiça!
- Então como é que lava a loiça?
- O que é que você tem a ver com isso? Despache lá o gasóleo, que eu quero-me ir embora.
- E a promoção desta revista, a “Feriado”, não quer?
- Não. NÃO QUERO PROMOÇÃO NENHUMA!
- Nesta os pontos triplicam, e ainda se habilita a ganhar um volume de tabaco de enrolar.
- NÃO FUMO! E não quero pontos.
- Ah, que pena. Tenho cá uma promoção nas mortalhas...nem queira saber as ofertas! Então, se calha, deve querer a promoção da cerveja?!
- Já lhe disse, NÃO QUERO PROMOÇÕES, registe lá isso, homem.
Entretanto chega outro cliente à bomba e forma fila atrás do cliente.
- Qual era a sua bomba?
- 1!
- Aquele carro de mulher?
- Esse mesmo!, responde, já prestes a explodir.
- De certeza que não quer a promoção da cerveja? Olhe que vou registar e depois já não pode...
- Quero lá saber das promoções! As promoções são uma merda!
- Olhó Pipi, não quer promoções. Não precisas, não? Não te faz falta?!
O cliente que afirma isto tem um ar ameaçador e uma cicatriz que lhe atravessa toda a face esquerda. Finalmente sai o talão da caixa. O cliente inicial fita longamente o homem da cicatriz olhos nos olhos após o que se dirige à saída. Dirige-se ao carro e tenta começar a abastecer. Pega na mangueira, coloca-a no bocal do depósito, mas nada acontece. Volta à bomba, deixando a mangueira colocada no carro.
- Olhó tiozinho, vens às promoções, é?, diz o homem da cicatriz.
O cliente passa-se. Volta ao carro em passo largo, abre a porta, o porta-luvas, retira um revólver.
Volta à bomba. Aponta o revólver aos presentes.
- Querem promoções? Então vamos lá a isso! Tu aí, ó enfezado - dirigindo-se ao caixa - Toca a activar as bombas todas para poderem atestar!
O funcionário, em pânico, activa as bombas.
- Com que então bloqueava! Só comprando chocolates é que dava, não era? Palerma! Então e agora, já funciona? E estás a ver agora qual é agora o dilema?, pergunta, apontando-lhe a pistola.
Vira-se para o homem da cicatriz:
- Tu, já te passou a garganta? Vais buscar o Detergente da loiça. Também está em promoção. E rápido, duas garrafas de litro!, grita, enquanto o homem da cicatriz corre para a secção dos detergentes.
O da cicatriz volta com dois frascos de Detergente da loiça.
- Dá uma garrafa ao enfezado! Vá, toca a beber essa merda, os dois! E rápido! Não gostas de promoções? Vá, bebe!, grita, olhando para o homem da cicatriz. Este bebe a garrafa até ao fim, tal como o funcionário. Fica com um ar totalmente agoniado.
- Agora vais para o microfone e dizer, com ALEGRIA, a todos os que quiserem abastecer, que o gasóleo e a gasolina estão em promoção: são GRÁTIS! Vais deixar abastecer todos os carros e não vais falar a mais ninguém em mais promoção nenhuma. Entendido?
- S-s-s-s-iim - responde, completamente lívido.
- Bom, passo aqui daqui a bocado. Se eu vir que as pessoas não estão a abastecer de borla, volto cá dentro! E tu, ó Quasi Modo, vai vomitar p’ra casa!
O cliente volta ao carro e parte. Outro carro está a tentar abastecer e já es ouve ao altifalante a notícia da promoção.

Fim de cena

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