terça-feira, 28 de outubro de 2008

De belos adormecimentos vive o Homem...




textos de candidatura - VII, Antónia Marinho´


Todos nós ouvimos, em algum momento da nossa infância, histórias de encantar.
As personagens são-nos bem familiares. Há sempre uma pobre coitada, a mais bela de todas, por sinal abençoada com uma paciência de Job, prendada para as artes domésticas como só Miguel Ângelo para a cultura artística, e uma resignação perante a molestação que envergonharia qualquer mártir das Filipinas.

Há sempre um príncipe, rico e formoso, de carácter irrepreensível, talentoso e destinado - esperando paciente e abstinadamente - acrescente-se - a resgatar a pobre rapariga do seu triste fado. Há sempre a vilã, velha e feia, a maior parte das vezes, e, se bonita, só o é por artes mágicas, cuja tarefa se resume a infernizar a vida da infeliz que não pediu para nascer.

Há sempre um final feliz predestinado, um “foram felizes para sempre”, um triunfo do Bem sobre o Mal… E isto cola-se aos nossos ouvidos, apodera-se das nossas mentes e fica lá…à espera de ser verdade, à espera que aconteça…
Não teria praticamente consequência alguma se isso não se reflectisse na forma como nos perspectivamos, como encaramos a vida e nos relacionamos com os outros e com o mundo. Orientamo-nos todos, já nem sei se por causa ou consequência, por padrões extremistas e dicotómicos em que a felicidade surge como uma perfeição utópica que tem tanto de idealista como de frustrante.
Habituámo-nos a querer o impossível, pior, a exigi-lo. Se, por um lado, a felicidade passaria por atingir todos os objectivos que determinámos, por outro, não rever essa perfeição em nós ou nos outros é motivo de insatisfação. Quantas e quantas vezes passamos o tempo a lamuriarmo-nos de tudo o que nos acontece? Quantas vezes culpamos, pela nossa insatisfação, o tempo, a noite mal dormida, o trabalho, o dinheiro, o fim das férias? E quantas vezes isso nos impede de perceber que o que nos está a acontecer pode até ser melhor do que o que planeámos? Quantas oportunidades desperdiçamos para, na adversidade, revelarmos toda a nossa força, competência, aprendizagens, carácter, discernimento?
Queremos ser inteira, incomparável, irremediável e intemporalmente felizes e nem nos apercebemos que, cegos pela satisfação do nosso ego, trancamos, ironicamente, as portas à felicidade. Porque exigir uma felicidade plena, escrita aprioristicamente, é apagar as pequenas faíscas de alegria que iluminam o nosso dia.
Habituados a acreditar na divisão entre o Bem e Mal, construímos um discurso social que empurra a maldade para entidades incorpóreas, pior, para os outros, para o próximo. Advogamos para nós o papel principal, o de “coitadinho”, de pobre infeliz que espera que alguém divino tenha escrito uma merecida história com um final feliz. Justificamos as nossas incompetências com as incapacidades dos outros, os nossos defeitos com a imperfeição dos nossos semelhantes, as nossas infelicidades com invejas alheias. E vamos adiando…Adiamos olhar para nós e melhorar, adiámos olhar para os outros e tolerar, perdoar, aprender, construir, partilhar… E adormecemos as nossas dores, tranquilizamos as nossas insatisfações com lamúrias e o comodismo de uma crença que só nos alimenta de ilusão. Platão bem que nos avisou! Vivemos numa caverna desconhecendo que o mundo é bem superior às sombras que projecta.
Atrevamo-nos a reconhecer que o bem e o mal coexistem, que os opostos vivem lado a lado e só precisam de se harmonizar…tal como os humanos. A felicidade não é um estado de satisfação plena em que o homem deixou de desejar alguma coisa. Ninguém retira satisfação de algo em que não foi co-autor. Todos os dias somos postos à prova, somos convidados a evidenciar a nossa inteligência. E o inimigo não se chama Satanás, bruxaria, mau olhado. Chama-se preguiça, vício, egoísmo, corrupção, preconceito, mentira, orgulho, inveja, ambição…tão próximo de nós, tão familiar. Projectámos seres de feições maquiavélicas e, mais uma vez, escolhemos ignorar. Ignorámos que a voz do mal também ecoa dentro de nós. É por isso que rejeitamos, que receamos, que ofendemos… e, por ignorá-la, não a contrapomos, não escolhemos viver de outra forma.
Custa-nos assim tanto aceitar que o conto de fadas é escrito por nós e que, enquanto perdemos tempo com sonhos do que há-de vir, nos negamos a oportunidade de viver o que nos está a acontecer? É difícil acreditar que a nossa vida não tem um, mas pode até ter vários príncipes encantados? Não tem um, mas vários desafios que testam as nossas capacidades? Não tem um, mas vários finais felizes? E os vilões? Esses morrem a cada passo que escolhemos gostar dos outros e mostrá-lo, de partilhar com os outros e não recear a fragilidade da entrega, cada segundo que escolhemos matar um receio e plantar a confiança. Até pode ser difícil aceitar o desafio de viver estoicamente a nossa vida, mas acreditar que uma donzela, após dormir cem anos, se mantém intocável, linda e maravilhosa, e um príncipe, com um beijo, a acorda, não é mais implausível?

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