SEM TÍTULO
Ia indo desta para melhor. Atropelada por um autocarro.
Lembrei-me do treze, a carreira da Serafina, minha conhecida nos meus verdes anos, talvez por isso verdes anos. Gosto de autocarros e carreiras, há dísticos verdadeiramente emblemáticos, tipo: Marvila-Areeiro, Picheleira- Praça do Comércio ou mesmo Serafina-Serafina. Lá está.
Chamam-lhe fauna urbana.
Nem tudo é mau. Ora bolas, aquilo é um veículo andante, leva para aí uns cinquenta a contar com o pobre do motorista. A mistura de essências zoológicas pode ser verdadeiramente inspiradora, não é a memória olfactiva a soberana? Hoje lembrei-me da Serafina, naquela tangente à vida, um bafio próximo da morte, estranhamente tranquilizador, talvez por estar estampado no vidro de trás do veículo, a reconfortante mensagem:
“Sorria, viaje com a Carris”
Vanessa Luz
SEM TÍTULO
Era coxo. Mancava e deslocava-se com dificuldade. Faltava-lhe algo, mas ainda assim não deixava de viajar, de percorrer o Mundo de lés-a-lés. De sentir as palavras dos “outros”, aquelas nele colocadas, sem ele necessariamente as sentir.
Adorava contar, estórias e história, grandes e para pequenos. Não tinha forma, não era formatado – inclusive até se aborrecia com as formatações impostas pelos “outros”. Fazia rir e era engraçado, de ir às lágrimas de tão dramático. Embora leve, conseguia ser pesado. Era profundo. Mas nem sempre.
Já foi clássico apreciado, obra épica ignorada, cor-de-rosa de fazer corar os mais audazes e corajosos. Já foi curto e curtido, nem sempre denso, nem sempre poético.
Mas como os melhores tinhas os seus medos.
Tinha medo. Tinha horror. Tinha pânico de um dia acordar só, sem ninguém a quem se dar, com quem partilhar as suas mágoas, as suas angustias, as suas alegrias e viagens. De um dia acordar lívido e os seus companheiros de sempre estarem longe, demasiado longe e distraídos para olhar para ele. Para olhar por ele. Pelo menos uma última vez.
Ele era o texto.
João Camolas
SEM TÍTULO
“Mas q…?”, disse instintivamente, sobressaltada com o som da campainha. Tinha tudo preparado, o filme, as janelas e persianas fechadas, o vibrador à mão, e aparecia agora alguém pronto a estragar-lhe o seu momento. Abriu a porta com brusquidão evidente, não fosse uma testemunha de Jeová. A ideia de uma pessoa de fé interrompendo o seu momento profano entreteve-a por um segundo, antes de os seus olhos reconhecerem a meia cabeça visível por detrás do enorme ramo de flores.
“Desculpa”, disse ele, “Não queria ter feito aquela cena ao almoço.”
“E pensaste obter o meu perdão com flores…”, respondeu, seca, ela cuja maior vontade era ficar húmida.
“São para a Eduarda, não para ti”, rematou ele, tentando não parecer nervoso.
“Já é suficientemente mau teres dado a mostrar a nossa relação, no restaurante”, a sua voz saía cruel e ela não se importava. Nele podia descarregar à vontade as suas muitas frustrações. “Vai-te embora, estou ocupada!” A expectativa de prazer toldava-lhe qualquer semblante de respeito por ele, a quem mais o devia.
“Ok”, ronronou ele, manso.
“Dá beijinhos à Eduarda”, o gelo sempre presente na sua voz.
“Sofia”, respondeu ele, indignado, o hipócrita, “Não fales assim da tua mãe.”
“Dá beijinhos à Eduarda”, o gelo sempre presente na sua voz.
“Sofia”, respondeu ele, indignado, o hipócrita, “Não fales assim da tua mãe.”
João Gante
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