terça-feira, 7 de outubro de 2008

Continhos por encomenda

Conte uma história com princípio meio e fim que inclua as seguintes 5 palavras: FUGIR, GOLO, VAZIO, INTERPRETAÇÃO e FAVOR - escolhidas pelos alunos em plena sessão enquanto atiravam uma bola de futebol de uns para os outros e ao som de "Under Pressure" (Freddie Mercury mais David Bowie ...e Svetlana dançando).


Trinidad

Trinidad é o nome do perdigueiro português escolhido para acompanhar a primeira missão turista espacial.

No dia nove do nove de dois mil e nove, Trinidad embarcou na VIRGIN GALACTIC. A cadelinha abanava o rabo enquanto se aproximava do vazio no espaço. Com ela viajavam mais cinco tripulantes, duas mulheres e três homens. Trinidad não fazia a mínima ideia por que fora a escolhida para aquilo, salvo melhor interpretação por ter bom faro, ora nisso ela sempre fora boa. Viajavam há dias na órbita de Marte e a cadela não parava de abanar o rabo, de contente que estava. Ao trigésimo dia de viagem o aparelho aterrou. Os homens tinham andado à deriva e não sabiam onde estavam. Assim que as portas se abriram, Trinidad desatou a fugir, farejava que nem uma perdida, sentia o vento a favor. Andou dias e dias a farejar o novo espaço, até que voltou, com um coelho na boca. Os homens fizeram uma festa e deram a Trinidad uma taça com uma bebida cor-de-laranja, que ela bebeu num só golo, e abanava o rabo. Os homens assaram o coelho e deliciaram-se com o repasto. Um a um, os tripulantes, à excepção da cadela foram ficando mal dispostos, amarelos, caídos no chão. Trinidad não saia do pé deles, lambia-os, sem excepção. Ao fim de alguns dias os homens continuavam a dormir e a cadela resolveu tomar os comandos da VIRGIN GALACTIC. Fez jus a Pavlov e conseguiu descolar o aparelho sem grandes problemas. Regressou à terra. Foi recebida com pompa e circunstância. Mas nunca mais abanou o rabo.

Vanessa Luz


O Presépio (Torga revisitado ou só um conto de chacha)

- Golo! – Gritou o Migas!
Era assim que era chamado o Miguel, um rapaz de 15 anos, baixote, olhos azuis e uns belos caracóis dourados. O Pe. Porfírio via-o como a encarnação de um anjo, perfeito para representar o papel num presépio vivo, organizado como forma de angariação de fundos para a substituição de uns vitrais na Igreja. Já o imaginava numa interpretação nunca vista em Sarnais: todo branquinho, braços abertos, cabecinha inclinada para o Menino e uns olhinhos qual quadro de Miguel Ângelo! Mas de anjo, o Migas não tinha nada. Livre como o vento, não conhecia regras. Esperto como uma raposa, do Migas não faziam farinha. Tirava sempre partido de qualquer negociata.
- Ó Migas, chega aqui. Tu este ano vais ser a atracção! Ninguém melhor do que tu para fazeres de anjo. É um favor que prestas à paróquia.
O Migas não achou piada à brincadeira. Já estava a ver o Sábado perdido a fazer de expositor para toda a aldeia. Ainda por cima, era nesse dia que os rapazes tinham sempre qualquer arranjito combinado.
- Que ganho com isso? – perguntou.
- Ó Migas, isso nem se pergunta. Deus lá te recompensará pelo teu esforço.
O Migas não teve como recusar e lá estava ele, no Sábado, a levar o papel à séria. Até os pés e as mãos se lhe puseram roxos. Os olhos, vítreos. Da barriga, nem se fala: roncava que parecia o urrar do burro. Nem Miguel Ângelo previu a existência de geada na Anunciação. A Jacinta só levava as mãos à cabeça e expirava:
- Ai que o rapaz se me constipa! Já deve estar em transe!
Nisto, ouve-se um estrondo por trás do cenário. Parece que tinha havido confusão: o Samões e o Contreras, sem parceiro para a jogatina, tinham feito das suas para liberar o amigo. Acorreu o Carmo e a Trindade a ver se havia sangue. Nada. Só umas tábuas remexidas e o Samões com um pé torcido.
- Graças a Deus que não foi nada de mais.
- É verdade, por aqui se vê que Ele protege os que o seguem.
- Pronto, pronto, tudo aos seus lugares. O Migas? Que é dele?
Ninguém sabia do Migas, parecia que tinha levantado asas, mas não esperou pela recompensa do Céu porque o fundo da caixa das esmolas estava vazio.

Antónia Marinho

(que se esqueceu da palavra FUGIR mas tem personagens que fogem - cumprindo assim o "espírito da lei")


Sem título

Faustino nunca conhecera outra casa que não o moinho. Herança de família, costumava gracejar, mais vezes, sem que o soubesse, do que os poucos que o ouviam – porque não tinham outra escolha – suportavam.
Também seu pai escolhera o moinho como casa quando decidia fugir da verdadeira, bêbado, normalmente após a cópula com a mãe de Faustino. “Desenmerdem-se!”, dizia-lhes, antes de bater com a porta, cheio de vinho, vazio de ideias e fluidos. Nestes momentos, Faustino lembrava-se da interpretação dos saltimbancos que visitavam a aldeia.
Nunca fugira, Faustino. Não só porque a sua casa de infância ardera com seus pais, favor que sua mãe fizera às vozes de desespero que bradavam dentro dela por um fim à bizarria disforme em que a sua vida se transformara, mas porque Faustino era um firme crente no bem-estar a todo o custo, na ignorância como bênção. Para isso, para além da sua mente focada, tinha o álcool e a generosidade do moleiro, que o mantinha vivo com taças de farinha diluída.
Faustino deu um golo. Sabia a merda e disso sabia Faustino, que antes do moinho os tempos haviam sido difíceis. Não mais. Hoje, tudo mudaria. Observou a mula, movendo a mó, o animal alheio a ele como às paredes. Sentiu-se envergonhado. O animal ganhava o que comia. Também ele ganharia. Começaria uma vida nova. Ajudaria o moleiro que tão generoso fora para ele. Apoiando-se nas pedras rugosas da parede, ergueu-se. Avançou para a mó, mesmo no centro do moinho. Vira o velho moleiro fazer aquilo vezes sem conta. Cambaleou, o álcool toldando-lhe os movimentos. A sua cabeça veio repousar no pequeno muro de pedra. Piscando, Faustino viu a mó…A mó não viu Faustino.

João Gante

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