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Interlúdios à parte, falarei, agora sim, do que me levou a escrever sobre um chavão tão calejado como “o amor é cego”. Julgo poder ressuscitar esse lugar-comum que, de tão usado, se tornou balofo. Creio ter descoberto uma nova manifestação da expressão, mais nobre, canina mesmo. A Íris – reparem na ironia do nome enquadrado nesta crónica – é uma husky siberiana que tem tanto de pêlo preto como de branco. Os olhinhos azuis clarinhos sempre foram o ponto forte do seu book, qual modelo nórdica de suster a respiração. Quem conhece a raça, sabe que cães como a Íris são bastante carinhosos. E a Íris é, claro está, a luz dos olhos do seu dono. Constantino tem a cadela desde os tempos de secundário – e atenção que hoje é homem de barba feita. Ainda a cadela era bebé, já rebolava na areia da praia em frente à casa de Constantino, alinhando nas brincadeiras dele com os colegas. Era o centro das atenções. O orgulho daquele dono na cadela era imensurável e a Íris sabia-o. Usava-o em seu favor até. A alegre husky e Constantino eram inseparáveis. Pelo menos até à viagem de finalistas do 12º ano. Constantino acabava o secundário e partia com os colegas para Benidorm, destino clássico e incontornável de qualquer viagem de finalistas que se preze. Os olhinhos de Íris entristeceram. Naquela semana em que Constantino esteve longe, a cadela não comeu. Passou todo o tempo deitada na cama do seu dono e tomou a liberdade de lhe rasgar as roupas que lhe passavam pelos dentes. Castigava o dono que a abandonara. Sofria com aquela ausência. A mãe de Constantino desesperava ao ver a cadela naquele estado, mas ocultava o estado da pobre ao filho, para não o preocupar. No regresso de Espanha, Constantino encontrou uma cadela mais magra, mas a correr histérica ao seu encontro. Era boa de ver aquela alegria súbita, medida em dezenas de abanadelas de rabo por segundo. Íris depressa voltou ao que era dantes. Recuperou o peso perdido. Já as roupas, essas estavam irrecuperáveis.
Antes que Íris pudesse esquecer o que lhe custou aquela ausência de uma semana, Constantino partia novamente para os Estados Unidos, desta vez por um período de tempo maior. Ia com a mulher e o filho, queria trabalhar por lá durante uns anos, até conseguir pagar o empréstimo da casa que comprara depois de casar. Íris ficava na casa da mãe de Constantino. Voltou a não comer, passava os dias a chorar a ausência daquela pessoa que lhe fazia tanta falta. Os olhos azuis de Íris incharam e incharam até ficarem do tamanho de bolas de golfe. Os olhos de book, em tempos tão bonitos, estavam agora esbranquiçados e aguados, como se Íris neles guardasse todas as lágrimas que tinha para chorar. Ao fim de dois meses, os olhos minguaram, mas nunca perderam aquela camada de vidro esbranquiçado que lhes roubara o azul. Ironia das ironias: Íris estava cega. Existirá maior exemplo de que o amor é cego?
1 comentário:
"Os olhos de book, em tempos tão bonitos, estavam agora esbranquiçados e aguados, como se Íris neles guardasse todas as lágrimas que tinha para chorar".
Gostei muito desta imagem.
Mónica
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